segunda-feira, 30 de agosto de 2010

menino

José chega fraco, sonolento, olhos esbugalhados, pomo de adão viivelmente saliente. A magreza esquálida é notável e beira uma anorexia. José mantém-se faminto. Morto-vivo, diriam muitos que o viam. Mas será que era essa a unica maneira dele poder estar vivo?
"Minha mulher está exausta, mas não deixa de cuidar de mim". A mulher dá a ele leite ninho atolado de açúcar. As vezes prepara-o com nescau e até mesmo sustagem. Mantendo-se anêmico e completamente frágil, ganha da mulher tratamento mais que especial. O filho de 22 anos conseguiu um emprego, finalmente. Não há mais necessidade de disputar com ele seu lugar junto a esta esposa- super- mãe. Mantendo-se anoréxico, mantém o amor devoto da mulher por ele. Quase uma virgem-maria, esta mulher que nao demandava dele qualquer traço de masculinidade. Se tinha algum amante, pouco importava a José. Que o desejo sexual da esposa se realizasse em outro lugar, era seu desejo materno que saia vitorioso. Assim reina sua majestade, o bebê da esposa, que chegara ao tratamento depertando em todos uma imensa angústia. "Seria pedófilo?" Perguntou-se isso entre as pessoas durante muito tempo por que sua marca registrada era um amor que José revelara sentir por um menina de 14 anos. "Seria pedófilo?" A pergunta ressoava, cutucando cada um em sua moral, sua tolerancia ao fora-do-comum. José, entretanto, revelava um amor pueril, queria sentar na sala e brincar com ela. Sexo? Haveria desejo sexual pela menina de 14 anos? Que espécie de amor era essa, quando ninguem conseguia escutar no discurso de José qualquer intenção maliciosa? Ele respeitava com a mais pura devoçao a pureza daquela menina, amava-a, amava sua inocencia, seu corpo ainda desabrochando os primeiros e tímidos traços de mulher. Entre a menina e a mãe não haviam mais possibilidades. Ou José era um bebê da esposa ou irmão da menina. Seu corpo quase sumindo revelava a completa sofreguidão em ter de sustentar uma imagem de Homem. Qual o ganho em ser Homem? Pergunta sem resposta para José.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

amor inventado

ele disse que amava tanto que perdoava tudo... pois ela era linda, livre, alegre! beijava-o com ternura e ardência, fechava os olhos prolongadamente durantes os beijos, a ponto de continuar fora do ar mesmo quando ele afastasse dela os lábios. ele perdoaria qualquer segredo omitido, qualquer descaso dela com ele, inclusive a incentivaria e contar-lhe suas tramas, abrir-se com ele, posto que a relaçao deles era independente de qualquer compromisso. o limite real que se impunha, impedindo-os de um relacionamento convencional, em que se vive todos os dias considerando-se um casal, libertava os dois de uma espécie de corrente que os aprisionava ao normal. eles eram livres para o amor.
de toda forma, quando feitas certas confissoes, algo se desestabilizaria nas fantasias que cada um mantinha vivas sobre o outro. ela já notava que ele estaria sentindo-se por baixo muitas vezes, como se estivesse mais ameaçado a perder suas posses. a liberdade excessiva dela lhe pesava em sua certeza sobre a própria masculinidade. as vezes sentia-se tao mais medroso que ela que acabava pensando...devaneando: queria ser mulher! deve ser como ser uma deusa com asas. pronta para tudo, sedutora, conquistadora e ainda por cima devota a dor. toda mulher vê na dor qualquer coisa de sublime.
ele entao sentia-se triste e ciumento, mas conseguia: sossegava. ia viajar, ouvir um concerto musical, andar de bicicleta por caminhos que nao conhecia. ele sabia ser feliz consigo mesmo, amava-se quando pensava que nao precisava dela. amava sua individualidade, sua pouca disposiçao para a intimidade em excesso, para o dia a dia, as pequenas renuncias que tinha que fazer em nome dos desejos dela. tinha pouquissima disposiçao para isso e sabia. este saber lhe caía bem. levantava a cabeça com ar superior e até mesmo procurava um espelho qualquer para dar uma olhadela na própria imagem.
ela nao tinha dúvidas de quem era. sabia de seu poder de seduçao, sabia que facilmente enlaçava qualquer pessoa a si mesma, amava muito a sensaçao do amor, a idéia de que podia fundir-se ao outroamando... sabia que sempre haveria olhares para ela e ineteresse por tudo aquilo que consegisse manter em recato. com recato ela sustentava um mistério extremamente instigador.
com todas a diferenças e indiferenças, eles sabiam que haveriam muitos momentos felizes juntos, muita comunhao, muita sintonia e era isso que importava aos dois. no meio e ao redor deles estaria o resto da vida, também bonita e sempre ameaçando o amor deles.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

dois

sol e órbitas
lua e sombra
noite e estrela
boca e boca
tequila e música
garfo e faca
pudor e apaixonamento
monet e van gogh
criação e desejo
narcisismo e ressentimento
amor e entrega
sexo e morte
cravo e canela
ele com ela

todo par que se completa faz UM

domingo, 22 de agosto de 2010

três

três pratos de trigo para três tigres tristes
três tragos de cigarro para três amigas distintas
três copos de cerveja para três meninas no bar
três sacolas de roupas pra três mulheres nas compras
três risadas femininas são uma grande gargalhada que contagia a rua toda
três lágrimas no rosto de uma viram nove no rosto de todas

uma conversa mole de um cara qualquer irrita as três
um tirada de sarro de uma com a outra faz sempre a terceira rir
um monólogo sobre o amor faz as três quererem amar
um grande amor sintoniza as carências delas
uma grande sacanagem sintoniza as raivas delas
uma grande novidade sintoniza os suspiros entusiasmados
uma morte deixa as três de luto por ela
uma gravidez deixa os três devires maternos palpitando seus corpos de mulher

duas brigando deixam a terceira como pólo neutro
duas chorando deixam a terceira se sentindo culpada
duas bebendo deixam a terceira sendo careta
duas angustiadas deixam a terceira se sentindo cega
duas morrendo de rir deixam a terceira se sentindo um tédio
duas querendo amizade chamam a terceira pra compor

três amigas sempre carregam três amores com elas, cada qual com seu jeito tão único de amar...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

vontade de violência e de ser violentado...

Ele - Hoje eu vim aqui pra reclamar, pra que vocês me olhem!!! Voces sao uns negligentes!! Quero denuncia-los, psicólogos de merda!!

Eu - (silêncio, perplexidade)

Ele - (grita alto pela instituição) Psicólogos de merda!!! Pensam que sabem como eu sofro? Pensam que sabem pelo que eu estou passando? Nao consigo me organziar, nao consigo nem cuidar de mim mesmo!!! não tomo banho, emagreci muito, olha só! (exibe a barriga chupada)

Eu- vamos conversar em um lugar mais reservado (fecho a porta da sala). O que poderiamos ter feito? tentamos telefonar, até pensamos em ir a tua casa... você sumiu...

Ele- (ainda grita) porque eu não estou conseguindo vir!!! E não venha se defender, a responsabilidade é de vocês! E eu não sei se iria recebê-los em minha casa! Não confio em vcs!!

Eu - (baixando o escudo que automaticamente levantei frente a uma fala agressiva como essa)porque será que falhamos com isso? não somos perfeitos, às vezes é dificil confiar em quem não é perfeito....

Ele - (mais calmo) é, vocês realmente não sabem do que eu preciso....

Eu- do que você precisa?

Ele - que cuidem de mim!!

Eu - (em conflito - culpa por nao ter cuidado direito x mas que espécie de cuidado impossivel ele quer?)
como podemos cuidar de você agora?

Ele - quero ser internado! ficar sob vigilancia 24 hs, remédios 24 hs, quero poder não ter nenhuma escolha porque tenho medo de fazer mal a mim mesmo. vocês nem sabem, mas eu ando me colocando em risco!!!

Eu- não sabemos pois você nunca nos conta...

Ele - e nem vou contar!!!! não quero que vocês saibam de minha intimidade!

Eu - (posta em cheque em minha função de psicóloga, na minha maneira de fazer vínculos de confiança e no meu adequamento às regras de funcionamento daquela instituição). Então é de outro cuidado que você precisa, de um contenção, e não que investiguemos com você tua vida íntima a fim de ajudá-lo a refletir sobre o que está acontecendo....
( como falar de intimidade se ele diz que é impossivel confiar?)

Ele - isso mesmo... mas tudo bem... eu posso dizer que estou atravessando a rua sem olhar, corro sempre o risco de ser atropelado, uso cocaína todos os dias, ando dando por aí sem preservativos... e não por uma vontade minha (não?), mas porque não tenho mais escolha, tudo o que aparece na minha frente eu vou tragando....

Eu - o tratamento aqui proposto você nao consegue tragar, não é? (ainda me questioando sobre o " tratamento aqui proposto".)

Ele - Olha, querida, eu não quero ofendê-los aqui, não quero causar problemas, só quero brigar pelo que é meu! que me levem a sério! vou precisar denunciá-los por isso...

Eu - (parece que ele queria mesmo era denunciar-se... mas com que intuito?) ok, você pode fazer isso se sente que sua verdade será levada em conta, é isso que importa afinal de contas, que sua verdade ganhe voz, e se for necessária uma queixa registrada, que seja... mas porque não falar disso diretamente a nós, já que está aqui conosco? você está aqui agora!

Ele - (vacilante) prefiro denunciar a clínica e depois me internar. poderia ter ido sozinho, mas vim aqui antes informá-los!

Eu - (sua atitude de vir nos informar é um pedido de ajuda?) você quer que o ajudemos a se internar?

Ele - quero! mas voces não podem me manter preso lá!!!! (paradoxo: confiar no outro é um pedido de parceria ou de submissao à "autoridade dos psicólogos de merda"? )

Eu - porque faríamos isso?

Ele - já fizeram isso comigo muitas vezes, quando eu resolvo dar um voto de confiança à alguém abusam de mim, distorcem tudo, falam de mim como se eu fosse bandido. e eu não tenho mais relações com niguém, ninguém me aguenta e eu não aguento mais ninguém (chora).

Eu - você pode ter certeza de que nosso interesse com você é ajudá-lo a passar pelo que você está passando...

Ele - vocês querem manter-me louco! pra que ganhem o dinheiro de vocês!!

Eu - nosso trabalho é ajudá-los para que partam, e novas pessoas cheguem. (quero muito acreditar que trabalhamos contra qualquer reprodução de um manicomio, mas será que isso que ele diz tem algum fundo de verdade?). você sem se tratar é que tem se mantido louco....

Ele - preciso de um remédio! rivotril pelo amor de deus, quero me acalmar para não falar mais assim com vocês.

Eu - dá-lhe um comprimido de rivotril! (mais calma em alguns minutos, como é bom o remédio em parceria com essas conversas que beiram o impossível....)

Ele - vou comprar uma coca-cola e bolachas. vem comer comigo!

Eu - (o que é isso agora? convite pra comermos do mesmo pão? isso é sedução? pedido de desculpas? tentativa de amor? tentativa de tragar-me também? sinto-me abusada...) Não, obrigada. Fico feliz de que está calmo, vamos estudar as possibilidades de internação pra você, ok?

Ele - come, deita e dorme.

(continua em um próximo capítulo, quem sabe...)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

idades

“Na verdade, tendemos, com o passar dos anos, ao lado mais difícil do ato de escolher. Nada é mais incomodo do que ter de escolher a cada momento- como beber o uísque, qual lado da cama ocupar etc .Por isso mesmo, quando jovens, aceitamos praticamente tudo, fugindo à escolha através de uma tolerância enorme. Estamos tateando ainda o corpo amorfo das coisas, suas texturas e perigos, e o das outras pessoas, os seus disfarces, a sua ameaça velada, mas sem nos comprometer demais. De tudo experimentamos, curiosos, como se fossemos sempre sobreviver àquela escolha, como se não fosse nunca decisiva. Com a idade, ao contrario, nos tornamos marionetes de escolhas antigas e carregamos em nosso dia-a-dia os fósseis de comportamentos cuja origem já não podemos lembrar. Em vez daquela suspensão característica de quando somos novos, livramo-nos do suplício de escolher obedecendo cegamente a tais escolhas. Por isso a velhice tem essa gravidade irrevogável, quase animal uma boa fatia do idoso permanece aquém de seu próprio controle, definitivamente automatizada. Não é tanto a proximidade da morte, mas a incapacidade de distanciar-se dos próprios automatismos o que faz com que velhos humanos lembrem animais muito velhos".

In: Nuno Ramos, Ó

sábado, 14 de agosto de 2010

trilha sonora de hoje

I was alone, I took a ride,
I didn’t know what I would find there.
Another road where maybe I
Could see another kind of mind there.
Ooh then I suddenly see you,
Ooh did I tell you I need you
Ev’ry single day of my life?
You didn’t run, you didn’t lie,
You knew I wanted just to hold you,
And had you gone, you knew in time
We’d meet again for I had to hold you.
Ooh you were meant to be near me,
Ooh and I want you to hear me,
Say we’ll be together ev’ry day.
Got to get you into my life.
What can I do, what can I be?
When I’m with you I want to stay there.
If I’m true I’ll never leave,
And if I do I know the way there.
Ooh then I suddenly see you,
Ooh did I tell you I need you
Ev’ry single day of my life?
Got to get you into my life.
Got to get you into my life.
I was alone, I took a ride,
I didn’t know what I would find there.
Another road where maybe I
Could see another kind of mind there.
Ooh then I suddenly see you,
Ooh did I tell you I need you
Ev’ry single day of life?
What are you doing to my life?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

mais um dia

quebra-se a mesmice, eis que surge nova gente. novas loucuras, novos afetos. nova vibraçao no ar que insistia-se em manter-se parado e repetido. reino de thânatos.
chega paranóia, auto - sacrifício, culpa histérica que beira o delirio e as fugas de realidade psicóticas. chega uma mulher encapuzada, amedrontada, chorosa. aos poucos vai fazendo vínculos quando - algo acontece que a perturba - de repente sai de si. entra em uma cápsula que a cega e ensurdece ao mundo. olha fixamente aos próprios pensamentos, pupilas vagas e ausentes. sussurra e si mesma e num gesto fugidio, afirma (quase implorando) que vai ao banheiro.
passam 40 mintuos, o banheiro fechado, uma voz baixa e discreta por trás da porta (quero desisitir dela). ela entao sai do banheiro, manchas de sangue pela calça e mãos. sem ter que insisitir muito, convido-a a contar porque havia se machucado. "os porcos estavam soltos. uma manada. querem me devorar em pedaços, sao carnívoros, gostam de carne humana. para distrair os porcos, meu sangue precisa estar espalhado pela minha pele. assim eles sentem seu odor e se afastam..."
pequenos cortes simétricos e horizontais na canela esquerda, que ela faz com um estilete que guarda diariamente na bolsa. tem carinho pelo estilete, é seu objeto mais precioso, mais indispensável.

se a cena era de sangue e estranheza em um lado, do outro era aniversario do oriental. ele sorria, os olhos fechados, a ingenuidade de uma criança que completava 27 anos. contagio geral. bolo de chocolate. campeonato de pingue-pong, fantasiando o kart em grupo. sempre rodeada de gente eu estou nessa labuta.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vincere

os loucos revelam nossas inquietantes verdades (mantendo-as escondidas, preservamos uma espécie de sanidade?)

quem era são na Italia de mussolini?

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

espera

Fechou os olhos mais intensamente, mordeu os lábios, sofrendo sem saber porquê. Abriu-os em seguida e no quarto - o quarto vazio! - subitamente não descobriu a marca da passagem de Joana. Como se fosse mentira sua existência... Ergue-se. Vem, gritou qualquer coisa nele ardente e mortal. Vem, vem, repetiu baixinho, cheio de temor, o olhar perdido. Vem...
Passos quase silenciosos pisavam lá fora as folhas secas. De novo Joana vinha... de novo ela o ouvia de longe.
Ele quedou-se de pé, junto da cama, os olhos ausentes, um cego ouvindo música distante. Aproximava-se, aproximava-se... Joana. Seus passos eram cada vez mais realidade, a única realidade. Joana. Com a subitaneidade de uma punhalada, a dor estalou dentro de seu corpo, iluminou-o de alegria e perplexidade.
Quando a porta se abriu para Joana ele deixou de existir. Escorregava muito fundo dentro de si, pairava na penumbra de sua própria floresta insuspeita. Movia-se agora de leve e seus gestos eram fáceis e novos. As pupilas escurecidas e alargadas, de súbito um animal fino, assustado como uma corça. No entanto a atmosfera tornara-se tão lúcida que ele perceberia qualquer movimento de coisa viva ao seu redor. E seu corpo era apenas memória fresca, onde se moldariam pela primeira vez as sensações.

In: Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem

terça-feira, 3 de agosto de 2010

at

o que vale mais é o processo, não o resultado final. É no movimento que o sujeito psicótico aparece.
Estamos juntas na loucura.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

La Casserole

Pensar em casamento e sentir necessidade de paixão fresca ao mesmo tempo, pensar em viagem e sacar um motivo forte que te prende onde voce está, pensar em emagrecer e acabar fazendo um almoço de domingo em um restaurante francês maravilhoso onde comer pouco seria considerado sacrilégio!

Ironias da vida?
Sabotagens inconscientes?

sacar as pequenas e perturbadoras mensagens do nosso cotidiano é estar atento às nossas verdades... por mais mentirosas que elas, as vezes, nos pareçam....