quinta-feira, 28 de abril de 2011

Escreve-se (eu?)

senta-se, cruza as pernas, mantém o tom sério (objetivo), o olhar que tenta a neutralidade (essa abstração, esse impossível). aquele que está a sua frente (tão humano quanto ele) desentende. o que ele deve ser alí?
nunca escreve Eu, usa sempre a terceira pessoa do genérico ou a primeira do plural. refere-se aos outros (seus colegas, amigos, sei lá) chamando-os "prezados".

caminhar da intimidade ao mundo - porque os passos necessários são os da "formalidade"?

máscaras de excessos, de excessos...

domingo, 24 de abril de 2011

o rei do mundo

braços tão curtos em um mundo que se alastra pra longe de mim; meus limites são tortos e incertos.
posso agora ver tudo mais do alto, posso percorrer distâncias usando só as minhas pernas. tenho controle sobre mim?
e se no meu caminho surge uma lata amarela, metalica, roliça, fria: quero!
não é só com uma mão, nem mesmo com as duas, é o meu corpo todo que precisa agarrá-la e por isso eu me inclino, bufando, experimentando um jeito todo novo de me esticar. toco na lata e a derrubo! ela rola pa mais longe de mim. sou eu que faço o contrário do que eu quero? como?
projeto-me pra frente, num impulso difícil e certeiro: sim! consigo agarrá-la!
braços tão curtos em um mundo que se faz, de repente, inteiro ao meu alcance.
lata que pode conter em si todo o meu mundo! é grandioso ter o mundo sob meu poder (ainda que por alguns segundos que não somam um minuto).
e vai ficar pra trás, jogada num canto, e vai deixar de ser uma conquista a medida que eu encontrar as próximas...
longos mintuos de aventuras que sobrevoam a passagem do tempo! sou cada dia maior!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

lembranças

Lembro-me dele fazendo a barba, aquele zunido do pequeno motor do aparelho de barbear alastrando-se pela manhã.
Lembro-me de escutar ansiosa o motor do carro dele chegando pela rua, eu já arrumada com uma roupa bem bonita, sentido-me sempre meio feia.
Lembro-me da espera: a primeira dor que senti na vida.
Esperar sem saber até quando e sem saber os motivos da demora. Porque o tempo na infância parece sem fim e da mesma maneira passa tão rápido? E quando ele chegava, ah! Era o momento em que eu sentia que sim, tinha dele muito amor, e era apenas isso o que eu queria.
Lembro-me do silêncio, sentar a sua frente e não ter o que dizer, mesmo querendo dizer um monte de coisas. Meu coração se apertava feliz com a curiosidade dele sobre a minha vida, que aumentava quanto mais eu me mantinha muda diante dele.
(Minha primeira experiência de poder ser mistério pra um homem).
Lembro do soar das bolas de tênis pingando na quadra, eu sozinha esperando no banco. Novamente, a espera. E na espera eu aproveitava pra dizer a todos que passavam que eu estava lá simplesmente porque esperava-o. Havia um ar de comoção nas pessoas que notavam a fascinação que eu tinha por ele, e nisso eu reconhecia em mim uma mulher que surgia a cada dia.
(sim, eu era capaz de capturar as pessoas)
Lembro-me de como EU soava na voz dele, era o único que inventava nomes pra mim a cada vez que me via. Sua voz tão espontânea como o bater do meu coração em sua presença...
Lembro-me de minha desilusão no dia em que escutei, por acaso, ele me chamando de boba a alguém. Eu na minha insegurança adolescente, tentando reencontrar-me em um mundo tão novo (em que eu parecia ainda não caber) e ele lamentando-se de mim por trás de minhas costas.
A segunda grande dor da minha existência.
Lembro-me dele com o choro entalado, querendo me poupar da dor de perder algo, tão desastrado, tão despreparado pra lidar com o sofrimento de uma mulher. E nesse momento eu pude ver nele um menino tão frágil. Justo no herói da minha vida toda, justo no homem que me deu o primeiro colo seguro e a primeira grande saudade.
(a grande queda)
E a experiência da solidão e da busca pelo amor toma enfim seu trajeto mais certo, graças a cada momento longe e a cada momento perto de meu pai.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

ela chega em casa quando tem gente saindo. a meia-noite é a hora que abarca tão diferentes tonalidades.
sua casa no silêncio do início da madrugada parece outra - pouca luz, alguns roncos de motor de automóvel que passa um a um, e cada cair de cada minuto os faz mais raros. seu quarto é uma bolha de sabão de onde se pode ver luzes de semáforos, ruas movimentadas (ainda) e até a placa do pão de açúcar...
seu quarto é uma bolha de sabão.
até quando se pode viver em uma bolha?
fora da bolha, qualquer pequena agressão tinha a fúria de um brutalidade imensa, que rasgava ao meio sua alma tranquila e pouco defendida.
(pouco defendida dentro de uma bolha de sabão)
a brutalidade pode ser doce. faz a raiva implodir em lágrimas, e cada sopro de amor ao redor dela se faz explícito.
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cada sopro de amor forma mais bolhas.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

gripe e insônia

Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar
Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque,
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?
Vou te encontrar Vestida de cetim
Pois em qualquer lugar
Esperas só por mim
E no teu beijo
Provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo
Mas tenho que encontrar
Vem Mas demore a chegar
Eu te detesto e amo
Morte, morte, morte que talvez
Seja o segredo desta vida
Qual será a forma da minha morte
Uma das tantas coisas que eu nao escolhi na vida
Existem tantas... um acidente de carro
O coração que se recusa a bater no próximo minuto
A anestesia mal-aplicada
A vida mal-vivida
A ferida mal curada
A dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido
Ou até, quem sabe,
O escorregão idiota num dia de sol
A cabeça no meio-fio Ó morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres
Me buscar
Que meu corpo seja cremado
E que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos
Na palavra rude que eu disse para alguém
Que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber / Aquela noite...

Raul Seixas

domingo, 10 de abril de 2011

blusa de rosas

no bar, sentou-se ao meu lado. um tanto alterada pela bebida, gesticulava vagarosamente, as sauves mãos femininas, a tenacidade com que falava de qualquer assunto. linda, envolta por tonalidades rosas e vermelhas do que vestia. a sensação de vê-la depois de um tempo fazia com que eu voltasse aos tempos em que éramos juntas, só nós, mulheres em dobro, entregues aos afetos do mundo todo.
estamos ambas acompanhadas pelos nossos respectivos. somos casais não casados, e casávamos alí algo em quatro. e até seis.
novamente entregues aos incertos titubeios afetivos, novamente duas sob os olhos de um Homem (todos os namorados desembocam nele)... apesar de cada qual ser manifestamente de um e de outro, na comunicação muda éramos de todos, inclusive uma da outra (como sempre fora). novamente apresentávamos ao Homem aquilo que ainda não havíamos mostrado, mistério presentificado sob a figura de outra mulher, ou sob a intensidade do desejo do outro homem - por qual? por quem?
nessa multiplicidade, de repente ele se parecia tanto com ela - e eu com o outro ele. o casamento não se trata de propriedade, trata-se da abertura ao múltiplo. e que assim seja...

segunda-feira, 4 de abril de 2011

lugares na cidade

ele disse que tem raiva de que o vejam assim, luta dia a dia contra o rapaz que ele é agora. em um esforço formidável, regride mentalmente a quem era antes. e quando vai aos lugares que costumava frequentar, revive algo que, se lhe pertence, já está transformado pelo tempo - e pelo seu prórpio trabalho em abrir-se à transformação. quem ele é agora?
que tipo de esforço ele precisa fazer para se redescobrir e ter, novamente, alguma identidade?
ele tem raiva de que o vejam assim - não, não é doente, não é essa a sua identidade - mas sua busca por um lugar social, mesmo que com garra, parece muitas vezes ser em vão. os lugares na cidade dizem tanto de quem somos...
neste conflito entre os tempos, ele vai e volta, com raiva e tensão, aos lugares de sempre. e o sempre nunca é o mesmo... como fazer destes mesmos lugares outra vez seus?

domingo, 3 de abril de 2011

caminho ao amor

por certo tempo estive vagando pelos dias, sedenta por suspiros e sentidos, iludindo-me com o bem estar das experiências agudas. apaixonada pela urgência da última vez, mergulhada em cada segundo fugidio de paraísos secretamente encontrados (e rapidamente perdidos).
guardei como pedra preciosa minha própria solidão, cuidadosamente lapidada a cada queda e cada dor. pedra-garantia dos encontros com meus paraísos perdidos, mantidos para recobrir cada abismo negro que vivia.
por tanto tempo estive vertginosa, amarrada às minhas garantias como alguém se amarra a um companheiro pro amor.
pois já era a hora de reconciliar-me, pouco a pouco, com a experiência do dois... mais sedenta por sossegos, livre do soterramento por instantes que sempre me prenunciaram o nunca. (o sempre e o nunca são prisões poderosas)

respiro, enfim, cada instante presente, tão doce é a intimidade do agora.
acordo, enfim, ao teu lado, para uma manhã de puro nada - e dou a ti a minha solidão.