segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Aperto

De repente, minha cama encolheu
e também minha calça jeans.
As roupas saltam para fora do armário
Coisas expandem-se para além dos lugares a que pertencem

Não caibo mais em minha casa
não caibo mais nas minhas horas de sono
nem no livro que leio
nem nos formulários que preencho

endereço, estado civil:
EM TRANSIÇÃO

telefone residencial:
INDETERMINADO

meus portáteis é que guardam meus pertences
o chip de meu celular
ou o porta-malas do meu carro

onde pode habitar a lacuna da transição?
se não no travesseiro onde sonho
então na insaciável sede de futuro!

se não nos devaneios que me assaltam (pois também não caibo mais nas 24 horas do dia)
ou na necessidade de "datar" cada rito
então no ilimitado prazer de esperar!

se não na sonora explosão de festejos
e nos numerosos encontros preparatórios
então nas reticências das conversas inacabadas...

Não caibo mais no meu corpo
que luta contra a ventania das mudanças
mantendo-se ligeriramente pesado,
na sua revolta contra a perfeita silhueta.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Mia Couto

As mulheres
Ntunzi as sonhava com tal ardor que elas se tornavam mais reais que as de carne e osso. Certa vez, nessa alucinada realidade, ele encontrou uma mulher de mil belezas.
Quando a aparecida lhe tocou no braço e ele a fitou, um frio o golpeou: a moça não tinha olhos. No lugar das órbitas, o que se vislumbrava eram dois vazios, dois poços sem paredes nem fundo.
- O que aconteceu com seus olhos? tremeruzilham-lhe as palavras.
- O que têm meus olhos?
- Bom, não os vejo.
Ela sorriu, espantada com o embaraço dele. Que ele devia estar nervoso, incapaz de acertar as visões.
- Os olhos de quem se ama, nunca se vêem.
- Entendo - afirmou Ntunzi, recuando às mil cautelas.
- Tem medo de mim, Ntunzito?
Mais um passo para trás, e Ntunzi se desamparou num abismo e ainda hoje ele está tombando, tombando, tombando. Para meu irmão o ensinamento era claro. A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

FELICIDADE

A FELICIDADE TOMOU CONTA DE MIM
NAQUELE POR DO SOL
ENTRE AS ÁRVORES E A CHAMINÉ
NO FINAL DA CHUVA.

CORRI PELA GRAMA
CERTA DE QUE A FELICIDADE ESTAVA LÁ
FUGINDO DE MIM PELOS POROS
MOLHANDO A GRAMA QUE TOCAVA MINHAS CANELAS.

RAPIDAMENTE ELA SE FOI
MAS PERDUROU BOM TEMPO
JÁ QUE SUA INTENSIDADE SE FEZ NOTAR
E O SOL AINDA MOSTRAVA SEU RESTO DE LUZ.

DEPOIS DE TAMANHA INTENSIDADE
NÃO HÁ TRISTEZA
MAS PURA PAZ
E O SERENO SABER DE QUE ESPERAR É NECESSÁRIO.

NÃO HÁ PALAVRA QUE DÊ CONTA
NÃO HÁ INSTANTE QUE A SEGURE
A FELICIDADE É FUGIDIA
E SEMPRE RETORNA, APÓS INCERTOS INTERVALOS.

ESPERAR POR ELA
FRENTE A UM CADERNO
FRENTE A UM DIA REPETITIVO
FRENTE ÀS PERGUNTAS QUE NÃO SE CALAM.

ESPERAR POR ELA
FRENTE A UMA NOVA POSTAGEM
FRENTE À IMPOTÊNCIA DAS PROMESSAS
FRENTE À INSUFICIÊNCIA DAS RESPOSTAS

ESPERAR POR ELA ATÉ QUANDO ELA CHEGA
AOS LENÇOIS AMASSADOS NA CAMA DE CASAL
ÀS PAREDES BRANCAS DO NOVO APARTAMENTO
AO ESTADO DE GRAÇA DE UMA GRÁVIDA.

CAPTURÁ-LA
NA VOLÚPIA DE UMA FANTASIA
NO SILÊNCIO DO NÓS DOIS
NOS OLHARES QUE SE ENCONTRAM SEM QUERER.

E ENTÃO REGISTRÁ-LA
EM UM SORRISO BEM FOTOGRAFADO
NUM POEMA ESCRITO A MÃO
NOS VÍCIOS DA MEMÓRIA.

POIS JAMAIS HAVERÁ COISA MELHOR
DO QUE CORRER PELA GRAMA
CERTA DE QUE UM CORPO PODE EXPERIMENTAR
SER EXTRAORDINARIAMENTE FELIZ.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

os acasos

energias afetivas trilham seus próprios caminhos
é possível percorrer as mesmas ruas de sempre
pois são estas as ruas que carregam as marcas da vida
é possível traçar um mapa do afetivo
criar cruzamentos, faróis e atalhos
circunscrever toda uma trajetória do amor
nos contornos de um mapa

e então é de se supor
que os encontros casuais
as coincidências
sejam realmente sinais
de que nossos caminhos serão sempre cruzados por quem já os cruzou

a vida: repetição de circuitos
que em sua aparente leviandade
carregam as profundezas dos grandes encontros;
preâmbulos do amor.