quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Rubem Braga


DESPEDIDA

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.


Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?


 Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil. 

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus. 

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 83. 


domingo, 26 de agosto de 2012

marido,
auxiliar em faz-tudo
co-piloto sentado em música
irmão secreto no ato incestuoso
protagonista da ilusão de meu futuro
que se inicia a cada segundo,

faço te caber minha vida toda
entre suas duas mãos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Casamento



 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.

sábado, 18 de agosto de 2012

livre

idéia: caminhar pelas ruas pensando em versos

farmácia: quit manicure, esmalte coral

caixa dez volumes: dois vinhos, flan de baunilha, mostarda dijon, papel higiênico, mix de folhas

decoração: garrafa de vinho com uma rosa falsa

new look: saia cintura alta com renda

presente: cerveja importada de alta fermentação

visual: postes com as lâmpadas apagadas

tempo: seco e escuro

ambiência: jazz ao vivo

sapato: salto alto na cama

madrugada: casamento em discussão.




domingo, 12 de agosto de 2012

Ellen Von Unwerth


intervalo

harmonia
entre dois sóis intercalados
tua respiração em compasso
enquanto dormes ao meu lado

nessa madrugada fresca
ruídos se perdem na imensidão onírica
carros afoitos por chegarem a seus destinos
antes do amanhecer

uma buzina apunhala o silêncio
que predomina, zelando por ti
tu, que adormeceste como criança
deixou-te levar pelo chamado da noite.

a manhã se demora
pra que tu adentres em descanso demorado
sem sonho, em total escuridão
como na morte dos que crêem em ressurreição.

e vou te sorrindo através do escuro
envolta ao teu corpo
que, em suspensão,
foge de mim.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

acostumando...

Nesse canto de sofá
Nessa mesa de bar
entre eu e você.

Nesse livro que não leio
No pensamento que te traz
constante e inacabado

Nessa louça meio suja
garrafa de vinho vazia
fechada a vácuo

Mora um abismo
impensável por ser abismo
espinho cravado no seu peito

E eu agora
que fico cismada em pensar
nesse abismo entre nós

Fico cismada em pensar
Que você me leva contigo
no ciúme

Que você me leva contigo
nos planos que faz pra depois do dia
tentando estar tão perto, tão perto

Esse abismo entre nós
abismo esse que é do tamanho de um amor
mora conosco.

Terceiro inquilino
Sem rosto nem documento
Ameaça nosso amor, enquanto o faz existir.