quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Casamento



 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.

sábado, 18 de agosto de 2012

livre

idéia: caminhar pelas ruas pensando em versos

farmácia: quit manicure, esmalte coral

caixa dez volumes: dois vinhos, flan de baunilha, mostarda dijon, papel higiênico, mix de folhas

decoração: garrafa de vinho com uma rosa falsa

new look: saia cintura alta com renda

presente: cerveja importada de alta fermentação

visual: postes com as lâmpadas apagadas

tempo: seco e escuro

ambiência: jazz ao vivo

sapato: salto alto na cama

madrugada: casamento em discussão.




domingo, 12 de agosto de 2012

Ellen Von Unwerth


intervalo

harmonia
entre dois sóis intercalados
tua respiração em compasso
enquanto dormes ao meu lado

nessa madrugada fresca
ruídos se perdem na imensidão onírica
carros afoitos por chegarem a seus destinos
antes do amanhecer

uma buzina apunhala o silêncio
que predomina, zelando por ti
tu, que adormeceste como criança
deixou-te levar pelo chamado da noite.

a manhã se demora
pra que tu adentres em descanso demorado
sem sonho, em total escuridão
como na morte dos que crêem em ressurreição.

e vou te sorrindo através do escuro
envolta ao teu corpo
que, em suspensão,
foge de mim.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

acostumando...

Nesse canto de sofá
Nessa mesa de bar
entre eu e você.

Nesse livro que não leio
No pensamento que te traz
constante e inacabado

Nessa louça meio suja
garrafa de vinho vazia
fechada a vácuo

Mora um abismo
impensável por ser abismo
espinho cravado no seu peito

E eu agora
que fico cismada em pensar
nesse abismo entre nós

Fico cismada em pensar
Que você me leva contigo
no ciúme

Que você me leva contigo
nos planos que faz pra depois do dia
tentando estar tão perto, tão perto

Esse abismo entre nós
abismo esse que é do tamanho de um amor
mora conosco.

Terceiro inquilino
Sem rosto nem documento
Ameaça nosso amor, enquanto o faz existir.