Décimo quinto andar.
Nada os alcançará alí em cima. Topo do mundo. Alta hora do sábado: já passava
da meia-noite, ambos dormentes vendo o filme no sofá. Uma taça de vinho pela
metade: a dele. A outra, quase vazia: a dela. Duas garrafas pairando sobre a mesa, tragadas até o fim.
Meio trôpega, ela é a
primeira a se levantar, rumo ao último ritual do dia - a escovação de dentes,
pra logo enfiar-se sob as cobertas, sonhando com o despertar silencioso do
domingo que se faz prometer lindo e ensolarado. E eis que, nesta curta caminhada
sonâmbula da sala ao banheiro, algo se move pra debaixo do móvel. A olhadela de
soslaio não a enganou: sim, era ela, a terrível barata!
Solta um grito de
horror, agudo, estilhaçante. Todo o efeito do álcool se dezfez, e todo o sono
que sentia foi transformado em nada mais nada menos que alarde e , bom que se
diga, repulsa.
Aturdido, ele levanta-se
do sofá, interrogando-a. Espantou-se quando soube do estúpido motivo. Tanto
alarme por nada! Mas ela contorcia-se de pavor, já em
cima da cadeira, sem coragem para recolocar os pés no chão. Avistava os
chinelos ao lado do sofá, tentava raciocinar um cálculo: correr até lá, calçar
os chinelos, trancar-se no quarto bem longe da barata. Mas não confiava no
próprio cálculo: a barata despertaria quando ela pisasse, sairia de baixo do móvel e iria ao seu
encontro, correndo também bêbada pelo chão até seus pés descalços. Ou pior: teria asas, voaria e, numa
topada cega, enroscaria-se em seus cabelos.
Durante o meio minuto em que tudo isso passou pela cabeça dela, ele continuava espantado com
o efeito que uma simples barata podia causar em sua namorada. Já estava alí,
com a vassoura nas mãos, encorajado a tentar fazer a barata vir à luz. Trabalho
de macho, dizia ela, confiante no namorado que tinha.
Muito tempo se passou, o móvel era
demasiado grande para que ele pudesse alcançar a barata. Pensou em desistir,
chegou a dizê-lo à namorada, calmamente: vamos dormir, de noite ela vai embora,
amanhã não estará mais.
Mas baratas? Ah, baratas
passam por debaixo da porta. Mesmo se estivessem trancados no quarto, ela viria
até eles, subiria pela cama em meio à escuridão e se faria notar pelo asqueroso
toque de seu corpo gélido nos corpos aconchegados dos namorados. Não, isso era
inaceitável. Ficariam ambos ali, até que ela presenciasse o esmagamento e morte
completa daquele inoportuno inseto.
Ele levantou a voz,
quase brigou com ela, mas tamanha parecia a fragilidade de sua namorada que
logo repensou. Ficariam ali, os dois, até que a barata reaparecesse. O grande
móvel, colado à parede, sob o qual a barata se escondia, nem mesmo podia ser
empurrado. Ele lamentou aquele móvel, lamentou a presença daquela pequena
invasora da tranquilidade do casal. Ela blasfemava. Os diabos que carreguem a
maldita! Os diabos que carreguem este homem que nem mesmo consegue matar uma
simples barata! Daí, ele sentiu-se atacado em sua masculinidade. E partiram pra
briga.
Gritaram um ao
outro, agrediram-se sem dó. Em um
momento, ele apontou a ela a vassoura, e era ela, a namorada, que ele queria
trucidar. Zangou-se, ela também, com tamanha injúria! Ser comparada a uma
barata, como podia ele? Quando perecbeu, já estava no chão, fazendo que ia
estapeá-lo. Deram-se conta de que a situação era outra, e nem mais se podia
saber se a barata estava alí.
Mas estava, e foi bem
ela quem os levou à trégua: das profundezas do móvel, ela correu, tão
rápido e tão desesperada que eles nem mesmo tiveram tempo de ver por onde se enfiou – novamente escondida.
Continuaram brigando,
dessa vez pelo fato da namorada ser tão histérica e descontrolada. Arremessaram até as
taças de vinho, em picos de ira naquela discussão que se instalava, cada vez mais, como um combate sem limites. Um vizinho
interfonou, reclamando da gritaria. “É por causa de uma barata”, explicou o
namorado, ironizando a situação.
“Insetcida!” foi a
palavra que faltava. Insetcida, disse o viznho. E mandou a eles o próprio, pelo
elevador. Mas como agora encontrar a
barata? Já havia se tornado uma assombraçao na casa, e a namorada continuava
recusando-se a ir deitar. Ele novamente perdeu a paciência e foi, por fim,
deitar-se sozinho. Ela que ficasse na sala, esbugalhada, como um cão de guarda
noturno.
E no dia seguinte,
naquele mesmo décimo quinto andar, uma manhã ensolarada desponatava a maior tragédia
da cidade: encontrado moço sem vida, deitado em sua cama, envenenado por
insetcida.
Do paradeiro da moça,
ninguém jamais soube. Já havia desaparecido quando o vizinho, aterrorizado,
avisou a polícia do que encontrara naquela manhã. Apenas a barata dava o seu ar
da graça, viva e desnuda, única testemunha do crime.
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