domingo, 31 de outubro de 2010

renascer a morte

e naquele dia em que renasceu pela vigézima sétima vez, as gentes que a amam se presentificaram: comparecimentos à festa que organizou, telefonemas, mensagens de texto. comemorar é estar com quem se ama, com quem te ama, é falar, ver, abraçar, sentir a proximidade. É?
uma lenta constatação a seguia durante cada minuto daquele dia que ia se passando, cada minuto que nascia praquele que morria. o tempo é falível. era a constatação da ausencia da velha-amiga que antes se presentificava a todo o instante. a todo o instante a velha-amiga estava lá, comparecendo, telefonando, pedindo, dando, trocando de todas as formas possíveis com a juventude dela. décadas de diferença que sempre as uniram, neste dia era fato: as separavam. haveria algo que pudesse ser chamado de presença? haveria amor que pudesse de alguma forma ser "coisificado"? que coisa a faz presente, que pele, que palavra, que voz, que abraço? como agora seria cada aniversário sem este amor tão óbvio?
renasceria por tantos outros anos até o dia em que chegaria ao último renascimento, como chegara a velha-amiga.
ela quis dormir, cansou-se da sala, da televisão, do telefone. ela quis a cama, cansou-se dos outros ambientes da casa, cansou-se das gentes todas ao seu redor, falando, falando, falando... procurou a ausência de todos quando sentiu que não mais renasceria. procurou o recato, o conforto de seu leito, e se fez então mais presente do que nunca. todos perguntavam por ela. e o sofá vazio guardava uma saudade imensurável.
as décadas nos separam, o poder do tempo é maior do que o dos corpos. e com o corpo, o que se faz é chorar. e procurar a presença de algo.
a casa vazia existe sem ela, mas só existe por causa dela, porque um dia foi feita por ela e pra ela. a velha-amiga deixara o maior presente de todos, e ali haveria sempre lugar pro amor.
e pro descanso.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

água

calor de 33 graus, sol das 5 e meia da tarde com horário de verão. ela parada na borda. azul acima, azul a frente, azul abaixo. as pernas dentro d´água estavam distorcidas. os pelos arrepiados com o toque gélido da água que não esquentara em conformidade com a atmosfera. o vento ja refrescava as maçãs do rosto, mas o corpo ainda estava quente, suado, hesitando adentrar aquele enorme azul.
um, dois, três!
o choque é grande, ela exala um suspiro gritado, curto, meio de dor, meio de prazer. começa a primeira braçada, a segunda, as pernas agitam-e uma após a outra em uma harmonia familiar. pertenceria às aguas do mundo, ela? envolver-se em líquido é estar contornada, enfim. não há qualquer vulnerabilidade possível alí, o corpo flutua, água é elemento-mãe.
inspira, expira, o automatismo desta respiração é diferente da respiração comum: é automática, mas sente-se mais o ar dentro de si, sente-se mais a falta do ar quando a pofundidade das águas o isola lá em cima. o ar é fugidio, a superfície é o lugar perfeito, alí se respira deliciosamente,e o peso... o peso do corpo não existe mais. pode-se boiar. ela bóia e olha o céu, azul, escurecendo, o último dia antes de um novo-renascimento.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Rita e seu corpo

Abriu-se uma brecha no mundo dos desejos, no mundo das possibilidades. "Cris, acho que queria trabalhar com maquiagem e cabeleireiro!", diz Rita, ao passar em frente ao salão de beleza. Há algumas semanas, Rita vem encontrar-me cada vez mais bem-vestida e impecavelmente maquiada. Olha minhas roupas, repara se fiz chapinha ou não no cabelo, se pintei ou não as unhas. "Cris, será que minhas unhas crescem?" Pergunta-me isso repetidas vezes nos encontros, dizendo que em seus momentos de "ansiedade", roe as unhas até chegarem na pura carne dos dedos. Passa entao a duvidar da existencia do próprio corpo, e cre no poder e violencia mortífera de sua ansiedade e seus dentes. "Será que quando o Dudu morde meu cabelo, ele vai cair?" Soube entao que o Dudu mordeu de brincadeira uma mecha de seus cabelos, e os pensamentos de Rita não a deixaram mais em paz desde então. A vivência de relação com um outro-canibalesco punha em xeque sua própria crença de que estava viva. Ao mesmo tempo, ela mesma tinha o incrível poder de destruir o outro e destruir a si mesma. Por vezes, senti desejo de ir com ela a qualquer lugar ser aniquilado. Era como se eu nao existisse. Combinávamos encontros que não aconteciam porque ela simplesmente "esquecia que eu a estava esperando". Foram necessários muitos "furos" pra que pudessemos enfim criar um vínculo. Eu esperar por horas, ligar, brigar com ela e continuar colocando-me a sua espera (muitas vezes quase sem expectativa, mas com uma mínima aposta) fez enfim um efeito. Os encontros que aconteciam, mesmo após ela atrasar uma hora ou mais, denunciavam um vinculo que ia se estabelecendo: "Ai Cris, voce nao fica brava de ficar sempre esperando?" Comecei a indagar-me sobre como a minha espera e a sua ausencia se conversavam. E foi entao que percebi: as nossas conversas estavam acontecendo, mas nao por palavras. Eram os desencontros, a pressa, a radiante aparição de Rita, atrasada e linda, que ia aos poucos traçando o fio transferencial que se esboçava. "Cris, que cor é essa que voce passou nas unhas?" Neste encontro de 15 minutos apenas, a comunicação foi através das unhas, eu mostrando as minhas, ela as dela. As cores dos esmaltes, a cada encontro, faziam-se assunto dos mais ricos e significativos a Rita. Em um dado encontro, ela me diz: "minhas unhas estao crescendo!" e mostra as afiadas unhas vermelhas, próprias de uma mulher que aposta em seus traços de sedução. Rita passa a chegar nos horários certos e nossos corpos conversam cada vez mais intensamente. Os passeios pelo shopping intercalavam uma loja que ela gostasse com uma que eu gostasse (ela fazia questao de saber qual era o meu gosto - o que faz pensar que ela rume a alteridade, somos mulheres diferentes afinal). Olhar vitrines, experimentar perfumes, bijuterias: conversas riquissimas nestes ats que finalmente culminariam nesta extraordinária fala "quero trabalhar como cabeleireira ou manicure em um salao de belezas". Procuramos e encontramos cursos para isso, Rita enfim parece estar encontrando a si um lugar no mundo. No dia em que fazemos a inscrição no curso, Rita pede para tomar um suco de goiaba comigo (o que vinha se estabelecendo no lugar do sorvete de antes - ela mesma instituiu o suco para enfim poder emagrecer, sem ter que privar-se do gosto de degustar algo junto comigo - outra rica comunicação qu tinhamos). Sentada à mesa ela diz, sorridente e bem humorada: "tem um coroa me paquerando no curso, fica me olhando, me olhando..." Pergunto a ela como se sente com isso: "ah, é bom paquerar né, eu também fico olhando pra ele: paquerar nao arranca pedaços". Ouço com satisfação esta frase de Rita: ela enfim encontrou uma maneira de conectar-se ao próprio desejo - sem comprometer seu corpo, sem ameaça-lo ao despedaçamento. Rita estava inteira.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

competencias passionais x performances

e o que nos engaja neste trabalho de/com doidos??

"encaremos a formaçao na clínica das psicoses como um processo da ordem da modificaçao: modificaçao de um certo nível de personalidade do sujeito que se engaja neste trabalho. nao uma transformaçao, mas uma modificaçao no sentido de uma sensibilizaçao para alguma coisa específica (ser sensível ao pequeno, ao imperceptível). seria importante poder precisar quais sao as qualidades implícitas que estao na base de uma certa "escolha" profissional. certamente que se pode estar aí por acaso. mas isto nunca é puro acaso: existe sempre uma dimensao inconsciente na decisao de se engajar, mesmo nesses tempos de desemprego, em que se espera um trabalho. Qual é o itinerário que leva cada um a trabalhar no campo psiquiátrico? Quais competencias deve-se ter para este trabalho?"

A competencia está em relaçao com o que marca a vida de qualquer um; nao simplesmente os trabalhos,os dias, os empregos, mas os gostos, as paixões. poderíamos definir assim uma carta das "competencias passionais"...

Jean Oury, in: Itinerários de formação

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

EU SOU ASTRÓLOGO!! VOCÊS PRECISAM ACREDITAR EM MIM!

Inferno Astral: a própria palavra já nos remete a medo, tristeza, desespero… Mas não é bem por aí. O Inferno Astral é o período que antecede o nosso aniversário, exatamente no mês anterior ao dia do nosso aniversário. Este é o último período do nosso ciclo astrológico do ano, corresponde à casa 12.
Os ciclos astrológicos são estágios de desenvolvimento e, no final de cada ciclo, geralmente é marcado por agitação, mudanças, instabilidade, insegurança. Isso acontece porque no final do ciclo, estamos com as nossas energias esgotadas, é como se a nossa pilha estivesse no fim. Ao iniciar um novo ciclo, as nossas baterias se recarregam e temos força novamente para seguir mais um ano, é a época do renascimento.
Nem sempre o período que antecede o nosso aniversário é marcado por acontecimentos desfavoráveis e dramáticos, este período deve ser visto também como um período de meditação, recolhimento e interiorização. É o período em que devemos nos preparar para iniciar um Novo Ano Solar.

(agora ta tudo explicado...)

domingo, 17 de outubro de 2010

anônimos

ser um casal no bar entre tantas outras mesas com casais, ser um casal no cinema, na pista da balada, num restaurante, num shopping, num motel, no apartamento de um prédio cheio de outros casais. ser um casal na rua, na esquina, na calçada esperando o farol verde, no ponto de onibus, dentro do carro no meio do transito, debaixo do sol, tomando vento, beijando desinteressadamente (atentos ao movimento), beijando apaixonadamente (indiferentes a todo o movimento).

o anonimato da cidade eleva quem se ama. o casal vive nas nuvens, elevado sobre a rotina aparentemente besta, ao mesmo tempo em que misturado a todo mundo.

mais um entre tantos, único entre todos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

cidade

naquele bairro longe, outro mundo, ela vai a um boteco que encontraria na porta de sua casa. afinal: são paulo todo era igual! diferente também, porque as pessoas as vezes pareciam diferentes. e tinha uma igreja linda nesse bairro distante que nao se assemelhava em nada a qualquer uma perto de sua casa. e haviam placas na rua indicando outros lugares que ela nem imaginava existirem. sim, ela podia ver essas pequenas e deliciosas diferenças que davam a doce sensaçao de se estar vivendo algo pela primeira vez...
mas e o confortável ar famliar que paira naquele boteco que ela escolheu a dedo? sabia bem se virar alí, os garçons, o cardápio, tudo era igual ao que ela conhecia. o suco de goiaba que pediu, confessou a estranha que era mais gostoso.
porque ela iria tao longe encontrar aquela estranha (ja um pouco conhecida)? o que a fazia querer ir até lá? ficar uma hora e meia no boteco tomando suco de goiaba com ela. ilustre estranha.
aos olhos dela, pareceria enfim corajosa?
mais bonita?
mais mulher?
oras bolas, a estranha daquele bairro distante nao sabia de seus estigmas, de seu passado, daquilo que ela se envergonhava. a estranha estaria alí como uma espécie de tabula rasa, pronta pra receber todas as impressoes e seduçoes que ela, nova em folha (imaginava) poderia imprimir-lhe.
tabula rasa....
alguem é tabula rasa?
e quem garantiria a ela que a estranha na verdade nao estava ja sacando que ela era dificil, burra, chata e as vezes até insuportavel?
imagina ir tao longe encontrar alguem que ja sabe de todos os seus defeitos? nao nao... nao devia saber (hesitaçao). e além do mais, o trajeto longo pela cidade ia apagando os traços cansativos da rotina, tudo, mesmo muito familiar, ia ficando estranho e a exaltava! a cidade é geograficamente feita pra que se encontre estranhos, pra que se seja estranha, anonima, mascarada!
melhor experiencia que essa, só errando pelo mundo afora, vendendo brincos e pulseiras pra garantir o pao de cada dia e a passagem pra proxima rodoviária.

sábado, 9 de outubro de 2010

o gosto do vivo

Pontada.
A primeira sensação é a de pontada no peito (e também no estômago), algo que a impele à...
Inquietude.
"Estás impelida a que, mulher? Sair do conforto?"
Medo.
Vem uma paralização familiar, aquela que geralmente ganha força e mata a inquietude. A pontada então fica tida como algo puramente corporal, um mal estar que deveria sumir. Ela queria se livrar daquela pontada dolorida com algum remédio que a chapasse de vez!
Princípo de constância.
Ele age sem dó, e a deixa sem movimento, anulada, anestesiada do que a impele à...
"Até quando se pode negar aquilo que pulsa? Até quando?!"
Pulsação.
É o coração agora, apontando novamente para fora. O pensamento que vem desta emoção a ridiculariza completamente:" idiota, cretina! Faça algo! Saia da cama, ande desorientada pela rua, quaquer coisa que oxigene esse corpo quase amorfo. Voce está confundida com sua própria cama. É teu leito de morte?"
Angústia.
Agora ela veio e não passa mais, não há nada a fazer, a angústia vem quando se esboçam estas palavras do pensamento. A palavra, mesmo pensada, já tem esse eficaz efeito de impedir a paralização e dar um nome a próxima ação que precisa ser tomada.
Significado.
" Eu podia mesmo era ligar pra alguém que eu goste...preciso de ajuda pra me mover."
Amor.
Aí está o primeiro movimento para fora!! Ela conseguiu procurar alguém, fez contato, contagiou alguém com sua voz meio sonambula, meio trêmula, meio demandante: " queria sair pra algum lugar, vem comigo?"
Confirmação.
A outra vai! A amiga, ela vai! Agora são duas as pessoas que fazem parte desta história que começou na primeira pontada no peito e no estômago. (Dois corpos contém estes órgãos). A angústia se ameniza, a amistosidade vai ganhando corpo, o medo também ameniza porque a companhia dá confiança.
O levantar da cama.
Momento emblmático. Ela sai, toma banho, escolhe uma blusa preta que deixa a mostra um de seus ombros " até que tenho ombros sensuais...". A idéia de ser sensual aguça seu olhar ao espelho. Maquiagem preta nos olhos. Quem é ela?
Máscara.
Sente que não é ela. Pode sumir no meio dos outros, desaparecer do mundo? Como a verão? Mulher linda? doente querendo se fazer de normal? Louca varrida implorando uma muleta pra fazer algo? " Sou ridícula, sou ridícula...'
Garganta.
Pronto, agora a pontada volta pela garganta e sobe aos olhos... Primeira lágrima, segunda, terceira... borra os olhos. Lágrimas negras escorrem pela maçã do rosto. Quem é ela?
Desfiguração.
"Se eu sair como outra, será que consigo? Esta que não sou eu, esta outra de maquiagem nos olhos que chora por se ver diferente". Ela estava bonita, simplesmente. Há quanto tempo tinha desacreditado de que era bonita? Sua figura atual era, esta sim, uma desfigurada. Apática, nem feliz nem triste: inerte. Mas lembrou-se então de que a primiera pontada veio dela! Foi seu corpo que gritou algo em silêncio! Seu corpo.
Reconhecimento.
"Sou eu, querida, estou te esperando aqui na frente do seu prédio". Ela ouve a voz da amiga que a aguarda. Alguém a aguarda. Alguém a aguarda. Sua presença é finalmente assunto da vida de outra pessoa. Limpa os olhos, vai sem maquiagem!
Mundo lá fora.
Os olhos vêem gente, ela respira o ar fresco da noite, a janela aberta do carro a permite degustar o vento. Tem um gosto bom...

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

tu

mas e se confurimos um pouquinho o eu e o tu? (filósofos homens jamais saberão da volúpia que existe aí)

minha cara-metade anda blogando também... diz ela que está tentando, bem melhor tentar do que conseguir eu diria...

posto aplausos a ela!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

amizade

A amizade nasce quando se tem o outro em grande estima, maior do que a que se tem por si, quando, ainda mais, ama-se o outro, mas menos que a si proprio, e quando enfim, para facilitar as relacoes se estabelece um disfarce, uma tingidura de intimidade, guardando-se sabiamente, ao mesmo tempo, da intimidade verdadeira e da confusao do eu e do tu.

Nietzsche

domingo, 3 de outubro de 2010

nota do autor

Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalizaçao, quando se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem.

In: Deleuze, Conversações