Em tempos de inflamadas discussões sobre a legalização do aborto, estamos todos diante de questões bastante complexas e controversas sobre, eu diria, a diferença dos sexos na cultura atual. Mais especificamente, na cultura atual brasileira.
Somos um dos países mais atrasados em termos de leis que garantam os direitos das mulheres. Acontece neste momento uma geral indignação, transformada em protestos pelas ativistas feministas, mas que toma grande parte das mulheres em geral, com relação a PL 5069, de autoria de Eduardo Cunha, ementa que "Tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto".
A ementa trata de intensificar ainda mais a criminalização da prática do aborto, até em casos de estupro (abortar, neste caso, já é legal), o que representa um enorme retrocesso na luta por uma legislação que garanta este direito às mulheres.
Foram muitas as manifestações, em especial as que encontrei nas redes sociais, não só sobre esse tema, mas que abarcam todo um contexto de reflexões acerca da igualdade de gêneros. #primeioassédio como resposta à infelizes afirmações de homens que diziam, por exemplo, que tal mulher "merece ser estuprada"e outros absurdos do tipo. Mulheres se uniram para relatar abusos que sofreram na vida, em prol de romper um silenciamento diante de fatos como os relatados.
#MulheresContraCunha, #MeuCorpoMinhasRegras, #AgoraÉQueSãoEleas, uma infinidade de agrupamentos femininos em luta não só pela descriminalização do aborto, como contra o machismo presente entre nós.
Iniciei esse texto afirmando que todas essas manifestações tratam de colocar em voga, ainda que muitas vezes indiretamente, uma discussão sobre a diferença dos sexos na cultura. Sigo atormentada com o fato de que sejam sempre as mulheres quem lutam e se indignam com o fato da legislação sobre o aborto estar em perigo de retroceder Não que não hajam homens que se indignem e se manifestem a favor da legislação pró-aborto, mas a luta segue sendo das mulheres, como bem vemos.
Se a mulher foi estuprada, há ai uma configuração real de abuso sexual, e aí sim ela está sozinha diante da decisão do que fazer com uma gravidez. Mas nos casos em que a mulher não deseja aquele filho, por inúmeras e indiscutíveis razões, pergunto-me: e o pai? Qual foi sua participação? Até que ponto a decisão sobre ter ou não um filho também não diz respeito a ele? Se houve relação sexual e se há gravidez, houve um homem que, seja qual for a relação afetiva que tem com a mulher, participou e também é responsável pela gravidez inesperada.
Meu tormento diz respeito ao fato de que, nestas manifestações, são as mulheres que se unem em favor de seus direitos e "contra o machismo" (que, eu diria, está também incutido em muitas mulheres). Quando as próprias mulheres não convocam os homens a participar dessa decisão, seja como parceiro, seja como pai em potencial, há um espécie de naturalização de que o "homem nada tem a ver com isso".
Claro, o fato da gravidez acontecer no corpo da mulher dita uma diferença básica: é ela quem vai viver física e psicologicamente todos os efeitos, seja da gravidez em curso, seja do aborto feito clandestinamente. O que não implica no fato de que o homem não deva ser convocado a pensar em seu próprio desejo com relação àquela mulher, àquele filho, àquela situação.
Acredito que, ao desresponsabilizarmos os homens, seguiremos lutando em falso, fazendo de uma situação que ocorre dentro de uma relação entre dois sexos, uma causa única e exclusivamente feminina.
Não serei ingênua: a realidade é muito diferente desta situação ideal em que homem e mulher deveriam ter os mesmos direitos e, portanto, as mesmas responsabilidades. Muitas mulheres abortam sem nem saber quem é o pai, ou sem nem avisá-lo, uma vez que este tal "homem" é totalmente dispensável desta decisão. Talvez porque a maioria, de fato, se faça dispensável (inegável a enorme quantidade de mães que criam sozinhas seus filhos). Mas qual a nossa participação nesta espécie de "dispensa masculina"?
Refletir sobre a diferença dos sexos deveria partir da convocação de cada homem a ser parceiro nesta empreitada. Lutar contra homens também faz de nós, mulheres, quem acaba segregando e isolando cada gênero. Temos, mais do que nunca, o potencial e os meios para que façamos dos homens aliados na luta por direitos iguais.
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