Sucumbira ao seu destino de mulher, não sem a dor oriunda da tragédida consequente de qualquer escolha. Casada e geralmente feliz, Lia deliciava-se na segunda gravidez, com o filho de dois anos ao seu lado. Ouvia suas palavras mal pronunciadas, suas tentativas de formar frases, sua voz de bebê que lhe causava freqüentes palpitações. Era apaixonada por aquele menino lindo, loiro, que saiu dela.
Largara o trabalho na clínica, era demais. Vivia das aulas que dava na faculdade, três noites por semana, e pelo dia ocupava-se com o recém-chegado exercício da maternidade. Lia amava o marido, amava a rotinha que dividiam, mesmo que não mais com a paixão fulminante da juventude que já lhe parecia estranha. Era como se aquela Lia de alguns anos atrás não lhe pertencesse mais: sentia como se aquela fosse uma jovem mulher de vida autônoma, separada dela, longe de sua história.
Lia esperava o marido, alisando a barriga. Olhava-se no espelho, o corpo mudado, fitava-se em um processo de auto-reconhecimento. Ouvia a voz do filho, que movimentava a rotina habitual com ondas sonoras melódicas - a melhor melodia que já ouvira. Ela abre o jornal e lê, sem intenção, uma reportagem sobre uma psicanalista renomada. Reconhece na foto a ex-colega de faculdade. A moça dava entrevistas à programas de televisão, jornais e revistas. Quem diria?
Levanta e vai a cozinha, prepara qualquer aperitivo para comer com o marido quando ele chegasse com o vinho. Lia e o marido mantinham o hábito de breves romantismos ao longo da semana, como queijo e vinho, luz de velas, beijos demorados, música.
Sim, era feliz como qualquer mulher gostaria de ser. Mas suas afirmações a respeito da prórpia felicidade vacilavam quando pensava na colega que não lhe saía da cabeça. Sua foto no jornal mostrava que continuava bonita. Era muito sensual esta moça, Lia lembrava-se que durante a faculdade namorava no mínimo uns 5 rapazes e vivia arrasando corações. Tinha casos com homens comprometidos, era odiada pelas meninas certinhas e bem comportadas. Até que se apaixonou perdidamente por um, bem mais velho que ela. O fato de o homem ser casado jamais a impedira de viver com ele o que achava que deveria viver. Era muito obstinada e muito impulsiva, contava suas aventuras a Lia que, na época, escutava inebriada, desejando também encontrar seu grande amor.
Agora dava entrevistas, reconehcida profissionalmente de maneira que ela, Lia, jamais seria. Não por falta de capacidade, mas de desejo. Lia dedicava boa parte do tempo aos filhos e marido, gostava de trabalhar poucas horas por dia. O trabalho lhe consumia energias demais, e ela queria guardá-las ao que, em sua opinião, havia de melhor. Lia perambula pela casa, em movimento errante e descontrolado. Reconhece dentro de si a necessidade de saber o que sucedeu a ex-colega. Anota seu telefone e, num gesto curioso, com lá seu pingo de inveja, telefona a casa dela.
- Alô, quer falar com quem?
- Adélia
Mas Adélia não podia atendê-la. Trabalhava, por certo. Pede a secretária para que retorne, duvidando que Adéilia telefonaria a ela, que há tantos anos não via. Adélia e Lia eram até próximas antigamente, uma em silêncio admirava a outra, cada qual com sua incompletude e desejo de ser oposta a si mesma.
Adélia telefonou tarde da noite, e saíram para uma cerveja uns três dias depois. Durante esses dias, Lia levava consigo uma ansiedade fora do comum. Já sentia saudade da tranquilidade que experimentava antes disso, mas não podia evitar, sabia. Antes do encontro, escolhe a dedo a roupa mais bonita, pinta os olhos.
Adélia, que gesticulava como antes, vestindo seus muitos anéis nos dedos das mãos, falava sem parar. Contava do sucesso profissional, das viagens, do fato de ter permanecido solteria e ainda amante do tal comprometido - que amor (ou desvalor) é aquele? perguntava Lia a si mesma. O coração dava trancos, Lia conhecia a sensação. Estava alí sua tragédia. Podia sentir a potada desta dor familiar,lembrava-se de quando era jovem e desejava o mundo. Sente-se próxima da juventude que antes estranhava.
- Filhos? pergunta Adélia numa exclamação - para quê tê-los se mal tenho tempo pra mim? Não, não me interessa ter filhos, quero viver o amor sem comprometimento, não acredito na felicidade que uma família poderia me dar. Tomarei anticoncepcionais até o dia da menopausa, diz rindo. Mas Lia está séria. Exala um grande suspiro, chama o garçom com a conta. Levanta-se da cadeira, carregando nas mãos a barriga grávida. Diz que precisa ir e, levemente transtornada, sai do bar, anda até a casa numa confusão de choro e riso.
Pensava na menopausa de Adélia.
No caminho, compra bromélias e sente o perfume fresco, como que numa suave renovação... puxa com força os próprios cabelos, a dor faz bem a Lia. Depois recompõe-se e continua, sem Adélia, o destino de mulher que escolhera a si.
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