sábado, 7 de setembro de 2013

crônica: antes do primeiro carro


Todos os dias ao meio dia e meia,  eu me postava ali na exata esquina da rua Tamandaré com a Castro Alves. A mochila dependurada num dos ombros, algo entre as mãos. Não me recordo se nessa época usávamos telefone celular. Ou se eu carregava um walk man/ disk man, qualquer desses aparelhos que hoje só existem em antiquário, ferro-velho, ou na casa desses colecionadores de relíquias do século XX.
O milênio há pouco havia mudado. Essa nova era se impunha diante de mim como uma monstruosa perspectiva de futuro. Nos anos dois mil eu não só alcançaria minha década dos vinte, como também teria meu primeiro vislumbre da circulação independente pela cidade. São Paulo era um monstro que se transfigurava a cada dia! A cada falha de atenção, prédios novos, ruas, mãos de ruas, tudo ia mudando de tempos em tempos sem aparente motivo. Sempre acreditei eu que os motivos das ininterruptas transformações de SP tivessem a ver com um projeto pensado pra cidade. Pra que o transito fluísse mais rápido, pra que os habitantes se acomodassem melhor por essa selva. Hoje em dia, creio piamente que a companhia de engenharia de tráfico tenta atrapalhar o transito o máximo possível e levar-nos a loucura extrema pra que saiamos, as pressas, pra outros centros urbanos. Quem sabe.
São Paulo se agigantando e eu ali, na pequena esquina do bairro da Liberdade, com um frio no estômago que também se agigantava É difícil imaginar a imensidão e complexidade do transito quando seu pequeno transito foi da sala de aula ao banheiro, depois a lanchonete e sala de aula novamente. Todo meu mundo cabia naquela mochila de livros, cadernos e elásticos de cabelo esquecidos. As vezes um brinco sem par, uma garrafa d`água, lápis sem ponta, agenda super-lotada. Encarando meus próprios sapatos, levo um susto quando sou abordada pelo carro que estaciona em minha frente, uma leve buzinadinha que me desperta num susto. Um Golf Verde, como era lindo! Pulo eufórica para o banco de motorista e meu avô condutor se realoca para o banco de passageiros.
Era eu, pela segunda vez, que dirigiria o Golf de vovô até  sua casa, no Morumbi. Meu velho avô estava se aposentando, querendo aproveitar as coisas da vida antes que fosse tarde. Diferente da minha, sua perspectiva de futuro ia diminuindo gradativamente. Fez essa resolução de me buscar todos os dias no cursinho pra me fazer praticar a direção. Eu já havia passado pela jornada fatigante da auto-escola e conseguido, sem propinas, uma carta de motorista! Mas isso não me era suficiente para dissipar o nervosismo. Vovô é do tipo que briga quando alguém faz alguma grande besteira. Do tipo que fica se lamentando pela possibilidade de burrice alheia. Quando lia o jornal, ridicularizava todos os personagens que faziam parte dele. Só mesmo depois de ter me tornado psicóloga é que fui entender que vovô não era, de fato, o dono da verdade. Só se fazia ser porque era um grande vaidoso. Se há loucura familiar no mundo, ela em geral ocorre quando há um grande vaidoso na família. Meu avô.
Eu tinha medo de errar uma coisa estúpida,  engatar a primeira na subida e bater no carro de trás, ou não conseguir trocar de faixa, deixar o carro morrer em lugares muito movimentados. Mas meu avô não deixava de estar ali, todos os dias, sem falta. Empenhou-se de coração em deixar-me conduzir o Golf Verde, como se fosse meu carro. Naqueles tempos iniciávamos uma série de viagens de carro da Liberdade ao Morumbi. Coisa de gente grande.
Naquele dia, a viagem se iniciou sem grandes problemas, vovô bem humorado tentando adivinhar o que vovó estaria fazendo de almoço. A rádio sempre sintonizada na cultura, musica clássica. Para meu avô, toda e qualquer outra musica que tocasse em toda e qualquer outra rádio não passava de um grande ruído. E, de grandes e tortuosos ruídos, já estávamos fartos dentro do transito paulistano. As subidas e faróis vermelhos do bairro da liberdade deixavam-me totalmente aflita. Meu avô sempre gritava: usa o freio de mão! Mas ainda não me era automático usar os pedais e o freio de mão ao mesmo tempo. Eu, fora de sintonia com o carro, tinha por vezes vontade de desistir e continuar usando o bom e velho metro, ônibus. Ou as caronas. Mas o chamado da independência que urge aos dezoito anos era mais forte.
Até muito perto da 23 de maio, tudo ia saindo bem. Meu avô orgulhoso de mim, tranqüiliza-se a medida que nos aproximávamos de sua casa, cantando junto com a musica. Ópera. Mas quando a sensação é de extrema potencia, algo mostra-me que , na vida, não há ilusões. Eu não era, afinal, uma condutora experiente. No acesso à 23, uma ligeira curva seria meu primeiro grande erro. Bati.
Nem me lembro bem, bati sem mais nem menos, fiz uma curva meio reta, ou talvez torta demais. O fato é que o outro condutor, ao ver a minha cara de menina, minhas pernas magras tremendo de medo, começa a brigar com  meu avô. É ele o responsável pela pirralha desastrada? Por minutos, fico em silencio e deixo que os dois ali resolvam a situação. Mas quando o tal  chama meu avô de irresponsável, utilizo-me pela primeira vez da carta de motorista: era só uma permissão temporária, mas era oficial. Daí, tudo mudou, e meu avô e eu nos resolvemos com o tal estressadinho. Briga terminada, Peco chorosa ao velho que dirija pelo resto do caminho. Depois daquilo, eu não podia mais. Só que ele, como bem se havia instruído do cargo de professor, volta ao banco dos passageiros e me abre o sorriso mais bonito que já vi. “Pra acertar, é preciso errar algumas vezes”. Ditado de vovô. Meio clichê, pode-se dizer, mas serviu pra que eu adentrasse a vida adulta sem tantos ruídos e frios no estômago. 

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