quarta-feira, 4 de agosto de 2010

espera

Fechou os olhos mais intensamente, mordeu os lábios, sofrendo sem saber porquê. Abriu-os em seguida e no quarto - o quarto vazio! - subitamente não descobriu a marca da passagem de Joana. Como se fosse mentira sua existência... Ergue-se. Vem, gritou qualquer coisa nele ardente e mortal. Vem, vem, repetiu baixinho, cheio de temor, o olhar perdido. Vem...
Passos quase silenciosos pisavam lá fora as folhas secas. De novo Joana vinha... de novo ela o ouvia de longe.
Ele quedou-se de pé, junto da cama, os olhos ausentes, um cego ouvindo música distante. Aproximava-se, aproximava-se... Joana. Seus passos eram cada vez mais realidade, a única realidade. Joana. Com a subitaneidade de uma punhalada, a dor estalou dentro de seu corpo, iluminou-o de alegria e perplexidade.
Quando a porta se abriu para Joana ele deixou de existir. Escorregava muito fundo dentro de si, pairava na penumbra de sua própria floresta insuspeita. Movia-se agora de leve e seus gestos eram fáceis e novos. As pupilas escurecidas e alargadas, de súbito um animal fino, assustado como uma corça. No entanto a atmosfera tornara-se tão lúcida que ele perceberia qualquer movimento de coisa viva ao seu redor. E seu corpo era apenas memória fresca, onde se moldariam pela primeira vez as sensações.

In: Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem

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