quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Rita e seu corpo
Abriu-se uma brecha no mundo dos desejos, no mundo das possibilidades. "Cris, acho que queria trabalhar com maquiagem e cabeleireiro!", diz Rita, ao passar em frente ao salão de beleza. Há algumas semanas, Rita vem encontrar-me cada vez mais bem-vestida e impecavelmente maquiada. Olha minhas roupas, repara se fiz chapinha ou não no cabelo, se pintei ou não as unhas. "Cris, será que minhas unhas crescem?" Pergunta-me isso repetidas vezes nos encontros, dizendo que em seus momentos de "ansiedade", roe as unhas até chegarem na pura carne dos dedos. Passa entao a duvidar da existencia do próprio corpo, e cre no poder e violencia mortífera de sua ansiedade e seus dentes. "Será que quando o Dudu morde meu cabelo, ele vai cair?" Soube entao que o Dudu mordeu de brincadeira uma mecha de seus cabelos, e os pensamentos de Rita não a deixaram mais em paz desde então. A vivência de relação com um outro-canibalesco punha em xeque sua própria crença de que estava viva. Ao mesmo tempo, ela mesma tinha o incrível poder de destruir o outro e destruir a si mesma. Por vezes, senti desejo de ir com ela a qualquer lugar ser aniquilado. Era como se eu nao existisse. Combinávamos encontros que não aconteciam porque ela simplesmente "esquecia que eu a estava esperando". Foram necessários muitos "furos" pra que pudessemos enfim criar um vínculo. Eu esperar por horas, ligar, brigar com ela e continuar colocando-me a sua espera (muitas vezes quase sem expectativa, mas com uma mínima aposta) fez enfim um efeito. Os encontros que aconteciam, mesmo após ela atrasar uma hora ou mais, denunciavam um vinculo que ia se estabelecendo: "Ai Cris, voce nao fica brava de ficar sempre esperando?" Comecei a indagar-me sobre como a minha espera e a sua ausencia se conversavam. E foi entao que percebi: as nossas conversas estavam acontecendo, mas nao por palavras. Eram os desencontros, a pressa, a radiante aparição de Rita, atrasada e linda, que ia aos poucos traçando o fio transferencial que se esboçava. "Cris, que cor é essa que voce passou nas unhas?" Neste encontro de 15 minutos apenas, a comunicação foi através das unhas, eu mostrando as minhas, ela as dela. As cores dos esmaltes, a cada encontro, faziam-se assunto dos mais ricos e significativos a Rita. Em um dado encontro, ela me diz: "minhas unhas estao crescendo!" e mostra as afiadas unhas vermelhas, próprias de uma mulher que aposta em seus traços de sedução. Rita passa a chegar nos horários certos e nossos corpos conversam cada vez mais intensamente. Os passeios pelo shopping intercalavam uma loja que ela gostasse com uma que eu gostasse (ela fazia questao de saber qual era o meu gosto - o que faz pensar que ela rume a alteridade, somos mulheres diferentes afinal). Olhar vitrines, experimentar perfumes, bijuterias: conversas riquissimas nestes ats que finalmente culminariam nesta extraordinária fala "quero trabalhar como cabeleireira ou manicure em um salao de belezas". Procuramos e encontramos cursos para isso, Rita enfim parece estar encontrando a si um lugar no mundo. No dia em que fazemos a inscrição no curso, Rita pede para tomar um suco de goiaba comigo (o que vinha se estabelecendo no lugar do sorvete de antes - ela mesma instituiu o suco para enfim poder emagrecer, sem ter que privar-se do gosto de degustar algo junto comigo - outra rica comunicação qu tinhamos). Sentada à mesa ela diz, sorridente e bem humorada: "tem um coroa me paquerando no curso, fica me olhando, me olhando..." Pergunto a ela como se sente com isso: "ah, é bom paquerar né, eu também fico olhando pra ele: paquerar nao arranca pedaços". Ouço com satisfação esta frase de Rita: ela enfim encontrou uma maneira de conectar-se ao próprio desejo - sem comprometer seu corpo, sem ameaça-lo ao despedaçamento. Rita estava inteira.
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