sábado, 8 de dezembro de 2012

comunhão de bens

esse gosto pelas coisas ilícitas
cheirosas feito margaridas colocadas
numa mesa de toalha cor de rosa
em pequenas garrafas de vinho.

esse gosto que mata a cada vez
que urge
num corpo vivo aos lastros
dos acasos que já vieram.

esse gosto pela fumaça, pelo álcool
pela dança dos corpos entretidos de amor
é o que faz a vida
dar as suas caras

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

o desconhecido

a noite

cálida como se coberta por uma manta

escura, úmida, profunda;

misterioso

seria adentrar-me por completo...

sábado, 1 de dezembro de 2012

sobre o infinito (aos olhos de P)

passamos pelo cemitério do Araçá, na Dr. Arnaldo, chuva forte e trânsito parado. Estamos em silêncio escutando o limpador de para-brisa  e eu me lembro, de repente, daquele beagle de 16 anos que viajou comigo. Todos os dias de manhã ele continuava deitado na sua caminha, inquietando-me sempre com a dúvida sobre sua vida ou morte. Eu ficava atenta a sua imobilidade, tão imóvel quanto ele, mas o mínimo arfar de sua barriguinha me certificava: ainda respirava. Morreria a qualquer hora? Agora? Amanhã? Daqui a 6 meses? O pensamento causa desconforto.
Volto-me ao homem que está sentando ao meu lado, sereno.

- E sua mãe, P? o que houve com ela?
- Ah faz tempo que não a vejo... da última vez ela estava deitada na cama do hospital, com aquele aparelho de respirar no nariz.
- Faz quanto tempo isso?
-... (silêncio)
- Você foi ao cemitério?
- Eu não.  Fui ao terreiro. De umbanda, sabe? Lá eles me falaram que iam achar uma solução pra isso...
- Pra isso o que?
- Pra ida das pessoas. Essas que foram e não voltaram ainda....
- Eles falaram da solução?
- Tem umas rezas lá... coisa forte, tirar o espírito ruim do corpo. Eu nunca mais fui lá, porque não acharam ainda a solução. Mas deve ter uma solução pra isso. Jesus não ressuscitou depois de seis dias?
- Três. É o que dizem...
- A vida, amiguinha, a vida é eterna, não tem que ter essas coisas de morrer. O que é morrer, afinal? Botar no caixão? Uma vez eu vi um morto. Ele era feio, descuidado, não era a mesma pessoa bonita que eu conhecia. Ela deve estar em algum lugar... Agora eu to só com a F em casa (irmã). Os outros que moravam lá com a gente devem voltar uma hora. O mundo é sem fim...
- Você tem saudade deles?
- Saudade? a saudade é infinita....

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

das sensações do amor III: tempo sem registro

caminhando durante meses
sem tempo para saudade
esse romance comemora, de tempos em tempos, sua existência

sem dar-se conta de que começou de um lugar
lugar esse que foge às vistas


como se todo o caminho percorrido
desconsiderasse sua origem

frágil
como toda e qualquer origem


inaugura tempos sem ordem.

domingo, 11 de novembro de 2012

domingo de verão

Rodando por SP, ruas vazias
dentro do carro, esperando a chuva cair.
aqui fazem 40 graus
esse domingo caliente
abafa-nos , molha-nos;
assim
poderemos nos fundir, liquidados.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

um mundo aqui dentro

comer o mundo todo
e depois cuspir

nada é tão saboroso
quanto aquilo que se ingere
e, remoído pelos fluxos do corpo,
volta ao mesmo lugar de onde veio.

cuspir o mundo todo
e depois, comer do próprio vácuo.

sábado, 27 de outubro de 2012

o futuro vive aqui

no cair da noite
um vento cálido
suaviza a alma como os encontros a deus dará.

feriado de seis dias
três
três

trinta anos
no dia trinta
de dois mil e treze

a um ano daqui
este mesmo vento cálido
terá trazido tantas casualidades.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

atração dos inversos

a doçura
é um amargo multiplicado

dai-me todo o amor que houver em ti
que eu te respondo (idolatrada):
isso dói.

dói multiplicar raiva
embebida de amor.

a raiva quente
é tão excitante quanto a volúpia do teu beijo.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

trégua

naquela noite em que eu deitei e dormi de roupa
você ao meu lado na cama
contorcia-se em pesadelos contumazes
em que vivia uma deformação bizarra em teu corpo de homem:
suas forças se esvaiam!

como eu poderia entrar em teu sono,
delírio meticulosamente montado
em torno de todas as realidades fantasiosas
e todas a fantasias reais?
deitei e dormi, então
exausta.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

das sensações do amor: o risco da queda livre

não gostaria de me jogar
sem saber se estará no chão a me resgatar
e impedir minha queda dura e mortal

gostaria de um pôr do sol ao seu lado:
sentados no topo da colina
preparados para voar juntos por entre a escuridão.

sábado, 29 de setembro de 2012

casa

Sanduíche de rosbife, picles e molho tártaro

Igmar Bergman

vamos a Boston ou chapada Diamantina?

Puffolandia ou Puff Dady?

chá, cerveja, cachaça... tanto faz

afundar-se em seu ninho é tão bom;

isolemos-nos, por hoje, dos estranhos mundos.


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

eu só

Aqui nesse apartamento

luzes laranja
vida virada do avesso
um corpo que se desincorpora em aflição
como um santo caído do céu sobre terra deserta

alguma lágrima permitiria proteção
invólucro líquido ao redor dos olhos
pálpebras pesadas diriam: dorme
apaga-te deste inferno!

a dor de vê-lo precisar se rasgar
entrincheirado entre uma promessa e uma urgência
penetra-me devagar
silenciosamente, através de meu sono

aqui nesse apartamento
o silêncio de ser um só
é mais grave
do que o medo de perder amor.



domingo, 16 de setembro de 2012

sedução

Me dá um beijo
assim sem momento quente
sem saber se é sexo
sem saber se vai ou fica

Eu te peço assim
como tua mulher
rainha, poderosa
meio puta, meio escrava

Me dá um beijo
e leve-se daqui
enquanto eu me aconchego
no topo do nosso castelo.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Roubo


cada pedaço de mim que te pertence
confunde-se com os teus
levo teu corpo comigo a cada hora sem ti
e brigo pelos pedaços que já eram meus

(porque eu me lembro: eu existi antes de ti)


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Rubem Braga


DESPEDIDA

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.


Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?


 Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil. 

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus. 

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 83. 


domingo, 26 de agosto de 2012

marido,
auxiliar em faz-tudo
co-piloto sentado em música
irmão secreto no ato incestuoso
protagonista da ilusão de meu futuro
que se inicia a cada segundo,

faço te caber minha vida toda
entre suas duas mãos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Casamento



 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Texto extraído do livro "Adélia Prado - Poesia Reunida", Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.

sábado, 18 de agosto de 2012

livre

idéia: caminhar pelas ruas pensando em versos

farmácia: quit manicure, esmalte coral

caixa dez volumes: dois vinhos, flan de baunilha, mostarda dijon, papel higiênico, mix de folhas

decoração: garrafa de vinho com uma rosa falsa

new look: saia cintura alta com renda

presente: cerveja importada de alta fermentação

visual: postes com as lâmpadas apagadas

tempo: seco e escuro

ambiência: jazz ao vivo

sapato: salto alto na cama

madrugada: casamento em discussão.




domingo, 12 de agosto de 2012

Ellen Von Unwerth


intervalo

harmonia
entre dois sóis intercalados
tua respiração em compasso
enquanto dormes ao meu lado

nessa madrugada fresca
ruídos se perdem na imensidão onírica
carros afoitos por chegarem a seus destinos
antes do amanhecer

uma buzina apunhala o silêncio
que predomina, zelando por ti
tu, que adormeceste como criança
deixou-te levar pelo chamado da noite.

a manhã se demora
pra que tu adentres em descanso demorado
sem sonho, em total escuridão
como na morte dos que crêem em ressurreição.

e vou te sorrindo através do escuro
envolta ao teu corpo
que, em suspensão,
foge de mim.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

acostumando...

Nesse canto de sofá
Nessa mesa de bar
entre eu e você.

Nesse livro que não leio
No pensamento que te traz
constante e inacabado

Nessa louça meio suja
garrafa de vinho vazia
fechada a vácuo

Mora um abismo
impensável por ser abismo
espinho cravado no seu peito

E eu agora
que fico cismada em pensar
nesse abismo entre nós

Fico cismada em pensar
Que você me leva contigo
no ciúme

Que você me leva contigo
nos planos que faz pra depois do dia
tentando estar tão perto, tão perto

Esse abismo entre nós
abismo esse que é do tamanho de um amor
mora conosco.

Terceiro inquilino
Sem rosto nem documento
Ameaça nosso amor, enquanto o faz existir.

domingo, 29 de julho de 2012

A crise

E veja lá se não é verdade

que quando vou embora de onde sou cativada pelo cheiro

(cheiro de prenúncio de felicidade)

a vontade que me dá é de voltar!

sábado, 21 de julho de 2012

Vou abrir um restaurante no décimo andar:


Comida à vontade
Paga-se com a visita e o vinho
Quiçá uma torta de limão
Ou algum presente lá da Bahia pra essa terra tão fria...

Espagueti pra quem gosta de espagueti
Com alho e champingons
Ou um bom tomate pelado
Sálvia, salsinha e manjericão

Frango pra quem gosta de frango
Curry importado da Costa Rica
Teryaki importado da GNT
E as jacked potatoes do Jamie Oliver!!

Pão de queijo pra quem gosta de cerveja sem barriga vazia
Ou castanha de caju
Ou coalhada da vovó
Quem sabe um dia até uns bolinhos de aipim (óleo na cozinha, ai de mim)

Carne vermelha pode ser rosbife caseiro num sanduba
Ou um fraternal filé ao molho mostarda
Ou uns hambúrgueres feitos pelo marido
Sócio e auxiliar da cozinha do décimo andar

No fim de tudo, uvas eternas
Hálito de um bom pesto
Sono e barriga cheia
Comida é amarração pro amor!

(aprendam, periguetes! aprendam, astrólogos da patifaria!)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

da fertilidade e da morte

...algo me diz que aquilo que me fertiliza, me entope. e vou transbordando até o fim, até o talo do talo. E de repente, não sou mais fértil: sou um corpo pequeno, enfiado em um sofá, e os pensamentos rodam e rodam dentro dele, e nada de novo acontece.

Nada de novo pode acontecer no já sabido.

Os mesmos pensamentos em cada minuto que vem.
É da repetição que nasce a vida?

Eu quero estar fértil, preciso abrir uma porta...
(esse mundo todo feito de portas fechadas, umbigos, umbigos)
Eu quero estar fértil,
retirar-me do que faz morrer, apontar o dedo pra cara da morte (essa morte feita de umbigos gelados e estáticos nos lugares já sabidos que ocupam, essa morte sem dignidade, essa morte que acontece aos vivos) e denunciá-la com toda a raiva que posso sentir.

Denunciar todo o abuso, toda a sedução barata: o que me faz morrer.

A raiva gritada: será o parto que procuro.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Milan Kundera

"O olhar do homem já foi descrito muitas vezes. Ele pousa friamente sobre a mulher, ao que parece, como se a medisse, a pesasse, a avaliasse, a escolhesse, ou seja, como se a transformasse em coisa.
O que não se sabe tão bem é que a mulher não está inteiramente desarmada contra esse olhar. Se ela é transformada em coisa, ela então observa o homem com o olhar de uma coisa. É como se o martelo tivesse de repente olhos e observasse fixamente o pedreiro, que se serve dele para enfiar um prego. O pedreiro vê o olhar mal do martelo, perde a segurança e dá uma martelada no próprio dedo. O pedreiro é o senhor do martelo, porém é o martelo que leva vantagem sobre o pedreiro, porque a ferramenta sabe exatamente como deve ser manejada, enquanto aquele que a maneja só pode sabê-lo mais ou menos. O poder de olhar transforma o martelo em ser vivo, mas o bravo pedreiro tem de sustentar seu olhar insolente e, com a mão firme, transformá-lo novamente em coisa. Dizem que a mulher vive assim um movimento cósmico para o alto e depois para baixo: a elevação da coisa tornada criatura e a queda da criatura tornada coisa".

O livro do riso e do esquecimento

terça-feira, 26 de junho de 2012

os vizinhos

Aqui da janela eu a vejo na varanda, fumando seu cigarrinho de frente pra São Paulo toda. A cidade se iluminando as seis e pouco da tarde, terça-feira barulhenta por todos os lados, e ela alí, tranqüila com seu cigarro. Estará sozinha, esperando o marido? Ou esperando uma torta assar no forno? Já senti cheiro de comida da casa dela uma vez que abri a porta do elevador, a vizinha cozinha! As patinhas do cachorro também já chegaram aos meus ouvidos, em geral quando é tarde da noite e há silêncio (melhor momento do dia).
Do meu ângulo consigo ver apenas um abajur, a ponta de um tapete e parte do encosto do seu sofá: branco. Será dessas que tem a casa toda branca, seguidora das tendências da moda? A sua janela é como a minha, sem cortina. Talvez se importe pouco com privacidade, talvez goste da luz entrando perpetuamente em seu apartamento. Talvez seja vagarosa na aquisição das coisas, também recém-chegada ao edifício.
A rede de internet aberta que me aparece de tempos em tempos, seria dela? Se for, nunca vai saber que sou eu quem está roubando seu sinal. Se for vagarosa no que faz, pouco vai se incomodar se a internet lentificar um pouquinho. Ela aguardará, pacientemente, cada página da web se abrir, enquanto assa sua torta, enquanto cuida do cãozinho, enquanto fuma seu cigarro. Esperta, colocou uma cadeira confortável em sua varanda. Pra fumar confortável, bem instalada. Não quer deixar  a casa fedorenta, vai que o marido não gosta. Esperta, deixa tudo cheiroso pro marido, os cheiros são essenciais no amor. Até o cachorro precisa estar cheiroso. E o gato. Sim, também tem um gato na casa da vizinha, que gosta de ficar imóvel na varanda. Nunca o vi junto com ela, em geral eu o vejo junto com o cachorro. Provavelmente quando os vizinhos saem, e os bichanos precisam um do outro para aplacar a solidão. Mas ela não - não tem necessidade de aplacar a solidão, porque gosta dela. Gosta de estar consigo mesma, é de se notar que está em paz com os bichanos soltos pela casa. Seu cachorro não late, fiel ao silêncio de seu apartamento. Fiel até mesmo a mim, vizinha de porta, que detesta latidos estridentes.
A rede aberta que me aparece chama-se linksys - não, ela não daria esse nome a rede. Sua rede deve ter nome de mulher, e pensando bem, provavelmente só se pode acessá-la com senha. A vizinha é esperta. Ela e o maridão inventaram uma senha que ninguém nunca vai descobrir, provavelmente um nome ou uma data boba da história deles: nunca a data do casamento! (fácil demais). Quem sabe a data da primeira transa, ou de uma viagem que fizeram anos atrás. A vizinha não é muito nova, tem cara de estar casada há muito tempo e de confidenciar com o marido milhares de histórias que morrerão com eles...
Vai que um dia não bato em sua porta, a passos de onde estou. Nem que seja pra perguntar seu nome, daria um título melhor a essa postagem...

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Reencontre (après marriage)

esquecido, querido blog
que já me acompanhou por tantos meses na vida de projeções mirabolantes
e esperanças românticas
de feminina solitária que sempre fui

esquecido em um computador
habitante dos fundos de um armário de menina
fiel guardador de todas as roupas e apetrechos
de vinte e oito anos de infância

reencontro-te agora
recém-instalada em um recente lar
que vai abrigar os dias mais lindos
da nossa família recém-desejada

reencontro-te em minha cama
berço de noites que desconheço
de um sentimento que me invade, agora
e vai se perpetuar, inevitável, pelos dias de mulher.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

tamanha é a emoção em que um único coração troveja por oito horas de sono e se aquieta após oito horas de festa.

domingo, 13 de maio de 2012

faces da mulher

Emaranhado nos cabelos louros dela, pediu: _ Depois de tudo passado, porque não tinges de preto? surpresa, curiosa, sente uma pontada doída.. _ E perder meus tons naturais? _ Tens agora que se fazer toda mulher - escancarar a si mesma em uma máscara - ele diz. _ Pois queres me ver mentirosa? _ Sim, depois que tudo passar, quero ver-te mentir, e inebriar-me dos prazeres de teus mistérios; além do que, só eu - teu marido - é que saberei das mechas louras ocultas pela tinta. Numa sala de desconhecidos, onde encantarás a todos com tua pose, só eu saberei da tua verdade. _ Pois se me queres tão radicalmente distinta apenas para gabar-se de (de)ter minha verdade, prefiro continuar em meus tons claros, mesmo depois de tudo passar. Indigna-se: _ Serás minha esposa como também é namorada? igualzinha? _ Igualzinha?- ofende-se ela - Jamais!

terça-feira, 1 de maio de 2012

Maio

É bem cedo de manhã, bem cedo mesmo, mas algo de urgente me acontece, uma pressa incontrolável, ímpeto de correr atrás de... sei lá o quê... chegou? chegou o dia? O mês chama-se maio, outono no hemisfério sul, mês das noivas importado da Europa. As noivas todas de sapatos brancos e tulipas no buquê, elas estão juntas na Europa caminhando em um parque verde, faz sol! Sapatos brancos! Cadê os meus? Preciso correr, já é de manhã, o mês é maio, faz um frio que eu não sinto, o salão de cabeleireiros é quente com todos os secadores de cabelo ligados ao mesmo tempo, o ruído monótono me ensurdece e eu penso que... precisava encontrar meu vestido, ficou em casa? na loja? não agüento mais esses secadores, preciso correr, o tempo é curto, o mês já é maio, corro pelas ruas porque não encontro nenhum taxi, tenho que correr até lá, até onde estamos combinados! onde? pergunto as horas a alguém na rua, não encontro taxi nenhum, vou a pé mesmo, chegarei a tempo. Meu cabelo: ok. Meu vestido? Meu Deus, estou com ele no corpo, é ele mesmo, olho meus seios, meus pés: todos emoldurados pelo vestido, mas que horas foi que eu o coloquei? Alívio de estar vestida, vou andando num passo mais ligeiro, acho que está ficando calor, não posso suar! o fedor do suor vai estragar tudo, será que encontro um desodorante? Procuro farmácias, todas sumiram, como os taxis, será possível? Chegou o dia, o mês é maio, é feriado? Domingo?? (não pode ser, lembro que escolhi um sábado). Tem algo de errado, algo se arrasta: é o vestido! Olho pra trás, sua calda negra, suja de rua. Mas como pode ser isso? Eu cortei tudo certinho, barra do vestido rente ao chão. Fiz tudo rente, rente, rente ao salto dos... sapatos?? Lembrei! Tinha me esquecido dos sapatos. Não levei ao salão. Não levei a lugar nenhum.... Ficaram na Europa? (visualizei-os num lindo parque verde, esquecidos no gramado).Comprarei sapatos, tem algum shopping no caminho, eu sei que tem um na Av. Paulista, vou caminhando por ela, faz mais calor e o vestido se arrasta, parece que carrego também um véu enorme, melhor segurá-lo nas mãos antes que alguém pise nele. Olho a ponta do véu, tem uma marca de tênis marrom. Sim: uma marca de tênis marrom! Quem dera eu estar com aqueles tênis para que pudesse correr, pergunto as horas mas não tenho sucesso, as pessoas tem seus relógios parados, todas as pessoas na rua desconhecem as horas e - pior ainda - não me olham com o menor espanto. Noiva feia, eu? Noiva que passa desapercebida? Eu? Meu peito para, como os relógios, não sinto mais além de uma paralização dilacerante. Ensaio uma lágrima que rola negra pelo meu rosto: sim, eu tinha feito maquiagem e nem me lembrava. No shopping, muitas pessoas conhecidas olhando-me com ressentimento, eu não havia contado a elas sobre a importância do mês de maio, eu havia me esquecido delas todas enquanto pensava no vestido, nos secadores, nos sapatos, nas tulipas... Não, não são tulipas! São orquídeas! Orquídeas?? Minha mãe disse que eram grandes demais, preciso ligar pra minha mãe, não me lembro mais das flores, nem do número dos sapatos, eu calço 37? 35? Meus pés cansados e negros de sujeira parecem de criança, esqueci de passar esmalte de adulto. Esqueci de pedir pra maquiadora passar um corretivo nas minhas olheiras, me dão ar de velha, de cansada... É, devo ser uma criança velha, é isso, uma criança que sonhava com princesas se casando na Europa. Acho que é tarde, é tarde demais agora, minha mãe não me atende mais, o noivo não pode me ver assim: estraga a surpresa! Quem é que vai me acudir se não há taxis nem na av, Paulista! E além de tudo o que já me ocorreu nesse pesadelo!, sinto... que vai chover. Deve ser meio-dia já, e vai chover! Chove em maio? Minha mãe disse que não... (mas eu acho que só não chove na terra das princesas, onde estão secos e lustrados meus belos sapatos brancos)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

realização

E teve um dia... em que me senti tão sozinha e desamparada que inventei uma gravidez pra conversar com a barriga. Uma vez em que o mundo parecia tão incerto que eu inventei um "sim" em busca de consumar algum alívio ao meu corpo levitante. Outras vezes em que tudo era só saudade e tolerar qualquer momento presente era inventar um chão a um buraco infinito. Também arrebatar-me na aflição de sentir algo era inventar-me a mim mesma efêmera em meio ao perene. E agora dizer que SEI e QUERO é inventar um vida inteira a qual todos dizem: "sim". Agora inventar uma história de amor perene (em meio ao efêmero) é motivo justo pra que alguma história se realize.

domingo, 15 de abril de 2012

segunda-feira, 9 de abril de 2012

constelações imaginárias de um senhor

feitas de pequenas estrelas, faiscando antigas paixões
feitas de palavras ao vento, ditas uma só vez
feitas de memórias
desejos e tempo caminhado

são enfeites da vasta noite
em que apenas o silêncio impera
silêncio sepulcral
silêncio espacial
silêncio da solidão

constelamos, neste silêncio idoso, pequenos grupos de pessoas(-estrela)
companhias sonhadas
recordadas com saudade
será que ainda são verdade?

(na vida deste viúvo solitário)

terça-feira, 3 de abril de 2012

segunda-feira, 2 de abril de 2012

ao amigo que reencontro

Pois se queres saber de minha vida, te conto as boas novas:
mês que vem, vou me casar!
de véu, grinalda, noivo de paletó
com data, hora e lugar marcado

sim, chegou-me esta hora
tu que me dizias pra aproveitar a meninice
o descompromisso da adolescência
a doçura dos amores fugazes

chegou-me esta hora

ajeitar-me numa cama de casal
a um corpo que não é meu
recém-nascida para o tempo a dois

chegou-me esta hora

ele que me tens como espécie rara
que gosta de me olhar a cara
que gosta de beijar
até o dedão do meu pé

vou sim, vou viver com ele
e refazer-me toda
resgatarei
o que nunca soube que era meu.

e tu,
que me escutas agora,
irás me reconhecer?

domingo, 25 de março de 2012

56 dias de outono

Pesadelos acontecem em plena luz do dia

Após uma noite não dormida

Após sonhos sem sono;

Quando um corpo fatigado

Pede cama e não a encontra

Pede arreio em um mundo acelerado

Sem poder frear seu passo largo

De cidadão afixionado

Por voltas que sempre dão no mesmo lugar.


É de um tremendo mal-estar

Estar nostálgico de sonhos

E carente do conforto de si mesmo

Aquele que se pode encontrar

Na própria pele

Aquele que vem da possibilidade

De devanear

Da fantasia bela

De estar acordado: esperando pasar a estação.

segunda-feira, 19 de março de 2012

na janela

Da janela, escuto

o mar!

da janela, escuto

soprar o vento

da janela, escuto

o ronco das buzinas
freios bruscos na madrugada

da janela escuto

seus passos no andar térreo
meu desejo de te ouvir à porta
chegar tilintando taças de cristal

.............

Eu gosto de tudo que ela faz

como fala
como nada
com se banha

Eu gosto de tudo o que ela faz

como voam
seus cabelos compridos
penteados de manhã

Eu gosto de tudo o que ela faz

como espera pelo meu carro
atenta, ouvidos aos pés
da janela

Eu gosto de tudo o que ela faz

como ela vêm a mim
quando eu chego em casa
com um vinho nas mãos.

quinta-feira, 15 de março de 2012

wormhole

outra vez, sufocada.

pego meu celular e vejo que horas são
00:21
não é tarde pra quem tem que acordar às 8:00.
(8:02, pra ser mais exata)

o que fazer com esse monte de entulho dentro da cabeça? o que fazer com a cabeça gorda, pesando pra todo lado?

são os tempos: todos os tempos que se intercalam em mim, acumulando num lugar só.

aí, eu sempre vou até a janela e ensaio um devaneio, que às vezes vira um choro calado, ou até uma oração
(não, não rezo a Deus pai Nosso, simplesmente oro!)

oro a um oráculo:
grande afago nos meus cabelos
porto-seguro
dobra do universo

oro a qualquer coisa;
pois qualquer coisa talvez vença essa velocidade
com que os pensamentos engordam a minha cabeça.

quarta-feira, 7 de março de 2012

pela primeira vez

tem uma lixeira em baixo da minha escrivaninha
pela primeira vez, em anos
ao deitar em minha cama
e olhar para a escrivaninha
vejo a lixeira

novidade
jamais esteve aí, essa lixeira
e eu nunca havia me questionado sobre o esforço cotidiano de ter de ir ao banheiro jogar o lixo
ou à lixeira da cozinha;
jamais me questionei sobre a praticidade que eu já poderia ter me doado.

essa lixeira recém-comprada
pensada pra compor outro cenário
outro ambiente
outra casa em que vai haver:
praticidade

outra casa em que vai haver
pijamas mais sexys
conversas de madrugada
bebdidinha no fim do dia
baseado quando vier a calhar

outra casa em que vai haver
duas pessoas
uma varanda menor (com cadeiras)
uma cama maior (sem cadeiras)
um sofá antigo com dois assentos

vai haver cozinha diferente
banheiro com quadro na parede
luminárias e mais escuridão
mais silêncio e mais música
melodias novas

escritório
prateleira de livros
meu mesmo quadro de girassois do Monet
meu mesmo mancebo de colares da vovó
e uma lixeira, de baixo da escrivaninha.

domingo, 4 de março de 2012

fim de semana

Árvore com vento
Cadeira com lá fora
Banheira com Gim Tônica
Sono com cama
Preguiça com desculpas
Noite com grilos
Sexo com solidão
Poesia com Ray Charles
Barato com piscina
Menino com menina

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

abra los ojos

eis que, aos olhos dos outros, sou aquilo que cada um vê.

"eu-mesma" esbarro no claro limite do outro "ele-mesmo"...

a vida é tragicômica: caminha-se quilômetros, vive-se por anos - às voltas do próprio umbigo.

(e quem diria, já foi ligado por um ínfimo cordão à barriga que nos guardou, iniciantes no mundo que éramos)

.....................

apenas durante um apaixonado momento de volúpia, é que um umbigo novamente se liga a outro.

no mais: egoístas e invejosos, esses somos os si-mesmos.
seres pensantes vivendo o cio eterno.

no mais: erotizados por natureza, polimorfos-perversos (pra não dizer na ordem freudiana)

.....................

eis que, aos olhos dos outros, sou aquilo que alguém já viu em idealização: sou sonho já sonhado.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

a espera de uma fotografia

acordei no meio da noite
sufocado

saí do quarto, entregue aos caminhos que percorro automaticamente em minha casa;
passei pelo banheiro,

desejei uma banheira de sonhos
e bolhas de papel,
(bodas de papel?)

desejei uma fantasia louca
uma mulher rouca
tentando gemer pra mim,

desejei uma festa colorida
entorpecentes de graça
sem fila pra ir ao banheiro,
(filha pra ir ao banheiro?)

desejei ter dela um bebê
fazer-lhe bem
dormir sobre sua barriga

desejei um grande cotonete
que me penetrasse, esvaziando-me de mim
invadido e esvaziado, como uma mulher sofrida
(ardida?)

desejei uma gravata
pra que ela me botasse em frente ao espelho
e me engomasse, como a um menino paparicado.

encontrei-me nu, no sofá
em frente a um porta-retratos
ainda sem fotografia.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

infância

Fazes parte de minha vida como jamais fizeste
como se me pudesses assaltar a memória
e converter-te em minha única história.

Encontro-te em eterno reencontro
como quando vou a praia e avisto o mar
o mesmo mar de minha infância

penetra-me nas mais recentes fotografias
as de ternura, as de todo dia
as das viagens mais lindas.

E mesmo meu passado
vai se infiltrando dentro deste momento
e misturando-se a ti;

tu que és matéria densa
que me corres pelo interior como sangue
e num corte jorras para fora, separado de mim.

E ao teu lado posam os meus amigos (espelhos meus)
dos novos aos antigos
renovados diante da força da tua companhia

reencontro-te
a cada vez que os olho nos olhos
ávida por me descobrir como jamais esperava ser.

Reencontro-me em ti, a todo o momento
tu és minha história até aqui
já que sempre perambulastes ao me redor, desde criança.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

quantos tijolos?

De quantos tijolos preciso pra construir uma casa?

uma base de umas duas dezenas pra assegurar a existência de um chão.
(casa sem chão é como viver em suspensão)

uns tantos centésimos pra levantar paredes
(as paredes escondem-nos dos maus olhos)

o telhado não se faz com tijolos
nem as janelas

o primeiro protege das precipitações
(e também do céu estrelado)

as segundas desvendam um pouco do mistério do dentro
(fazem vista grossa aos olhos)

e quando o mundo todo olha e olha sem parar:
o melhor é construir paredes mais altas?
tijolos no teto?
vedar as janelas?

ou sair pela porta, vestido de tijolos?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

mãe terra

fazia frio, e ela tinha até se esquecido de levar um casaco.
envolta pelo calor do próprio corpo, caminhava por entre as árvores.
a cada passo sobre as folhas secas, lembrava-se: era-lhe o único ruído.
ao redor, só silêncio.
estava sozinha.

estava sozinha.
e sua única liberdade era estar;
estar sendo.
alcançar léguas com o pensamento;
desenfreado, driblando o que a realidade poderia obstruir.

o som dos próprios passos entonavam o silêncio
e algo que poderia se assemelhar a uma saudade lhe acontecia.
o desejo de ser aconchegado por braços,
braços dos quais ela tinha recordação.

não eram braços pertencentes a alguém
alguma pessoa específica
com nome e identidade.

apenas um abraço,
roçando nela como música
nada mais.

poderia, assim, seguir sozinha
se deixadas pelos cantos as sementes que puderam germinar
durante toda a sua história de abraços.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Da sucessão da Mulher pela mulher

...pisando em sapatos de salto alto, com medo de ser mais alta do que é, ela caminha. Para junto de seu homem ela caminha, passos firmes.
E sobe em um degrau, como a um pódio que homenageia seu próprio destino de mulher.
(escolhera, por fim, um destino).

E em seu corpo, a vida vai acontecer.
Carregarás, no próprio ventre, a sucessora de si.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Hilda Hilst

Aflição de ser eu e não ser outra
Aflição de não ser, amor, aquela
que muitas filhas te deu, casou donzela
e à noite se prepara e se adivinha
objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
que te retém e não te desespera
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
e ter a face conturbada e móvel
E a um só tempo múltipla e imóvel

não saber se se ausenta ou se te espera
Aflição de te amar, se te comove
E sendo água, amor, querer ser terra.

Hilda Hilst

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Aperto

De repente, minha cama encolheu
e também minha calça jeans.
As roupas saltam para fora do armário
Coisas expandem-se para além dos lugares a que pertencem

Não caibo mais em minha casa
não caibo mais nas minhas horas de sono
nem no livro que leio
nem nos formulários que preencho

endereço, estado civil:
EM TRANSIÇÃO

telefone residencial:
INDETERMINADO

meus portáteis é que guardam meus pertences
o chip de meu celular
ou o porta-malas do meu carro

onde pode habitar a lacuna da transição?
se não no travesseiro onde sonho
então na insaciável sede de futuro!

se não nos devaneios que me assaltam (pois também não caibo mais nas 24 horas do dia)
ou na necessidade de "datar" cada rito
então no ilimitado prazer de esperar!

se não na sonora explosão de festejos
e nos numerosos encontros preparatórios
então nas reticências das conversas inacabadas...

Não caibo mais no meu corpo
que luta contra a ventania das mudanças
mantendo-se ligeriramente pesado,
na sua revolta contra a perfeita silhueta.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Mia Couto

As mulheres
Ntunzi as sonhava com tal ardor que elas se tornavam mais reais que as de carne e osso. Certa vez, nessa alucinada realidade, ele encontrou uma mulher de mil belezas.
Quando a aparecida lhe tocou no braço e ele a fitou, um frio o golpeou: a moça não tinha olhos. No lugar das órbitas, o que se vislumbrava eram dois vazios, dois poços sem paredes nem fundo.
- O que aconteceu com seus olhos? tremeruzilham-lhe as palavras.
- O que têm meus olhos?
- Bom, não os vejo.
Ela sorriu, espantada com o embaraço dele. Que ele devia estar nervoso, incapaz de acertar as visões.
- Os olhos de quem se ama, nunca se vêem.
- Entendo - afirmou Ntunzi, recuando às mil cautelas.
- Tem medo de mim, Ntunzito?
Mais um passo para trás, e Ntunzi se desamparou num abismo e ainda hoje ele está tombando, tombando, tombando. Para meu irmão o ensinamento era claro. A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

FELICIDADE

A FELICIDADE TOMOU CONTA DE MIM
NAQUELE POR DO SOL
ENTRE AS ÁRVORES E A CHAMINÉ
NO FINAL DA CHUVA.

CORRI PELA GRAMA
CERTA DE QUE A FELICIDADE ESTAVA LÁ
FUGINDO DE MIM PELOS POROS
MOLHANDO A GRAMA QUE TOCAVA MINHAS CANELAS.

RAPIDAMENTE ELA SE FOI
MAS PERDUROU BOM TEMPO
JÁ QUE SUA INTENSIDADE SE FEZ NOTAR
E O SOL AINDA MOSTRAVA SEU RESTO DE LUZ.

DEPOIS DE TAMANHA INTENSIDADE
NÃO HÁ TRISTEZA
MAS PURA PAZ
E O SERENO SABER DE QUE ESPERAR É NECESSÁRIO.

NÃO HÁ PALAVRA QUE DÊ CONTA
NÃO HÁ INSTANTE QUE A SEGURE
A FELICIDADE É FUGIDIA
E SEMPRE RETORNA, APÓS INCERTOS INTERVALOS.

ESPERAR POR ELA
FRENTE A UM CADERNO
FRENTE A UM DIA REPETITIVO
FRENTE ÀS PERGUNTAS QUE NÃO SE CALAM.

ESPERAR POR ELA
FRENTE A UMA NOVA POSTAGEM
FRENTE À IMPOTÊNCIA DAS PROMESSAS
FRENTE À INSUFICIÊNCIA DAS RESPOSTAS

ESPERAR POR ELA ATÉ QUANDO ELA CHEGA
AOS LENÇOIS AMASSADOS NA CAMA DE CASAL
ÀS PAREDES BRANCAS DO NOVO APARTAMENTO
AO ESTADO DE GRAÇA DE UMA GRÁVIDA.

CAPTURÁ-LA
NA VOLÚPIA DE UMA FANTASIA
NO SILÊNCIO DO NÓS DOIS
NOS OLHARES QUE SE ENCONTRAM SEM QUERER.

E ENTÃO REGISTRÁ-LA
EM UM SORRISO BEM FOTOGRAFADO
NUM POEMA ESCRITO A MÃO
NOS VÍCIOS DA MEMÓRIA.

POIS JAMAIS HAVERÁ COISA MELHOR
DO QUE CORRER PELA GRAMA
CERTA DE QUE UM CORPO PODE EXPERIMENTAR
SER EXTRAORDINARIAMENTE FELIZ.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

os acasos

energias afetivas trilham seus próprios caminhos
é possível percorrer as mesmas ruas de sempre
pois são estas as ruas que carregam as marcas da vida
é possível traçar um mapa do afetivo
criar cruzamentos, faróis e atalhos
circunscrever toda uma trajetória do amor
nos contornos de um mapa

e então é de se supor
que os encontros casuais
as coincidências
sejam realmente sinais
de que nossos caminhos serão sempre cruzados por quem já os cruzou

a vida: repetição de circuitos
que em sua aparente leviandade
carregam as profundezas dos grandes encontros;
preâmbulos do amor.