sábado, 24 de dezembro de 2011

meu homem.

libertinagem
é acordar as dez da manhã de um domingo e poder permanecer na cama durante o resto do dia.
confessar pequenos delitos quando houver necessidade, sem medo.

é jantar acompanhado.

libertar-se
é ceder ao orgulho próprio e

deixar estar

oferecer ao outro, sem resistência
aquilo que houver de si
e ainda sentir que fica com muito mais.

resmungar a rotina massante do dia e ser ouvida
ouvida na sua fala mais comum
mais anônima (numa caminhada a dois até a padaria da esquina)
mais passível de ser esquecida no meio das tantas outras frases que se perdem num dia.

desacorrentada
posso sonhar alto o absurdo
assistir outra vez um filme que amei
com ele.
com ele.

meu homem.
sua imagem monta-se a mim agora (que estou sozinha, alucinando-o)
e desmancha-se num pequeno fio de saudade
e na serenidade deixada pela certeza do "daqui a pouco"

meu homem.
faz o "daqui a pouco" ser sempre feliz de se esperar por
faz o futuro distante encostar-se em mim
na ponta do meu nariz.

e uma vida toda é possível.

um filme da minha vida esparrama-se diante de mim
e ele é sua coluna dorsal.
sem ele: há um rascunho de filme, borrado, cheio de lacunas.
ele o faz linear
contornado e levemente preenchido.

meu homem e eu
projetamos nesse momento
deliciosamente
um filme de nossas vidas.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

casamento bucólico

Joana Carmela adorava flores, e quando pequena andava por campos verdes. Pequenas flores, destas que se desintegram numa soprada, avançavam por todo o verde, colorindo de branco este belo retrato verde.

Joana Carmela catava as flores e ia acumulando na maos, uma por uma, até tomar o ímpeto de sopra-las todas, e alastrar uma chuva de pétalas ao seu redor.

Certa vez ensinaram a Joana Carmela o jogo do bem-me-quer, e quando entao descobriu poder comunicar-se com as flores: passou a sonhar.

O primeiro sonho infiltrara-se diretamente em seu útero, dando um calor curioso. E ao conhecer o primeiro menino por quem atraíra-se, deu uma forma ao caos de seu útero. Inventou a paixão.

Durante anos, Joana Carmela experimentou a fome pela paixão verdadeira, e buscava nos homens a solução perfeita a todas as suas imperfeições.

Pequena frustrada, a paixão pregou-lhe tantas peças que descobrira, enfim, o que lhe sucedia: andava apaixonando-se tanto pelas próprias imperfeições, que avidamente fazia a busca do perfeito oposto delas.

Sempre um espelho.

Joana Carmela ainda quer casar-se num campo verde, com o homem de seus sonhos.
Existirá?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Without you

I'll grow when you grow
Let me loosen up the blindfold
I'll fly when you cry
Lift us out of this landslide
Wherever you go
Whenever we part

I'll keep on healing all the scars
That we've collected from the start
I'd rather this than live without you
For every wish upon a star
That goes unanswered in the dark
There is a dream I've dreamt about you
And from afar I lie awake
Close my eyes to find
I wouldn't be the same...

I'll shine when you shine
Painted pictures on a my mind
Sunsets on this ocean
Never once on my devotion
However you are
Or far that you fall

I'll keep on healing all the scars
That we've collected from the start
I'd rather this than live without you.
For every wish upon a star
That goes unanswered in the dark
There is a dream I've dreamt about you.
And from afar I lie awake
Close my eyes to find
I wouldn't be the same
Without you
Without you

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

cama de casal

sweet dreams
como em um jazz clássico
ou em uma musica de Chico Buarque
sonhos a atravessam.

esperança
aquela esperança de tudo se ajeitar
construida magicamente no momento em que o encontrou
a inebria.

inebriada de prazer
prazer que se estende por todo o corpo
ela o sente em gostas, a cada dia
sem acúmulos nem excessos.

um dia após o outro dormindo ao seu lado
uma noite após a outra traz a ela um novo sonho
composto da pluralidade da vida
ele e ela dormindo a dois.

a cama de casal: sempre habitada por multidões
percebidas ou nao, estao ali deitados, esparramados...
um pai, uma mae, alguns bebes, retratos desfocados, projeções de si no escuro do quarto.
todos misturados no breve espaço entre corpos em forma de concha

(ha melhor que dormir assim?)

numa concha ira dormir todas as noites
ela: inebriada de prazer
atravessada por multidoes
em perfeita conexao com ele.

atravessar-se por sonhos na cama de casal
é deixar-se fresca a cada intensidade
a cada pulsação de desejo
sem encaixota-la na ilusão do UM.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Secos e Molhados

Não vou buscar
A esperança
Na linha do horizonte
Nem saciar
A sede do futuro
Da fonte do passado
Nada espero
E tudo quero
Sou quem toca
Sou quem dança
Quem na orquestra
Desafina
Quem delira
Sem ter febre
Só o par
E o parceiro
Das verdades
À desconfiança

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

no sol da costa rica

Meet me in the crowd
People, people
Throw your love around
Love me, love me

Take it into town
Happy, happy
Put it in the ground
Where the flowers grow
Gold and silver shine

Shiny happy people holding hands
Shiny happy people laughing (2x)

Everyone around
Love them, love them
Put it in your hands
Take care, take care

There's no time to cry
Happy, happy
Put it in your heart
Where tomorrow shines
Gold and silver shine

Shiny happy people holding hands

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

blocos

coisa e tal, ela ali com todo mundo na cervejinha, depois de um som "maneiro"... e logo quer ir-se.

ela anda monotemática.

pois a vida agora aparece inteira pintada de uma cor só. Viva. Uma cor que tonaliza tudo o mais, uma cor que faz vislumbrar amor, reunião, festa e futuro.

Uma única cor.

E um som maneiro podia também, nesse momento, tocar numa nota só (como o samba). A vida dela já passou por fases polifonicas, orquestrais e muitas vezes cheia de tons fora-de-tom: pedaços de vida sem qualquer melodia.

ela ja andou perdidamente desafinada...

E vai que pinta agora um quadro que exprima uma nota, delicada e certa aos ouvidos: pintaria como Kandinsky... amor e musica explodindo em cor.

algo de sensitivo deveria tomar posse desse momento que antecede um outro tao maior - tao esperado e tao opressor daquilo que se chame " tempo presente".

porque nada como o sensitivo faz mais volume ao que se vive agora - sim (conformação): o futuro precisa poder esperar a acontecer.

domingo, 6 de novembro de 2011

Teatro

e como em um teatro, ela abre sua alma e expõe seus segredos, grita ao mundo um grito agudo, e como em um teatro: ela se escancara no escuro de contexto nenhum.

como em um teatro, ela se veste em uma saia branca e sutiã, corpo a mostra. E xinga as injustiças do mundo: no palco, está acima da ignorância alheia.

como em um teatro, ela chega a um palco, vestida de noiva: quer expor sua sorte de ser amada. No palco, está acima do infortúnio alheio - a desgraça do desamor.

no palco do casamento é olhada com as expectativas impossíveis de todos os que já descobriram que, nos detalhes do amor, moram pequenas decepções.

no palco, vestida de branco: é olhada pela própria projeção de si mesma - noiva.

no palco, sem roupa nenhuma: é olhada pela própria projeção de si mesma - nua.
(corriqueiro é o pesadelo de estar-se num palco, nu)

e de noiva a nua, são poucos passos.

o Teatro, que sirva à doçura da ilusão e do sonho, que sirva aos olhos de quem busca as molduras do impossível.

luzes, maquiagem.

vestido de noiva.

são as mais belas molduras do impossível.

e a Nudez, que se escancare onde encontra lar permanente - no espaço íntimo do amor.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A realidade

E quando alguns sonhos e fantasias que estavam simplesmente na "fila de espera" se realizam: o que fazer?

escrever tem sido difícil debaixo deste torrencial banho de realidade!

terça-feira, 11 de outubro de 2011

amor

numa concha eu gostaria de estar
dentro duma concha cor de rosa, perolada, no meio da areia.
na beira do mar.
lambuzada de chocolate,
quero estar toda dentro duma linda concha.

afagada pelos teus toques.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ipê Roxo

e daí vejo um ipê roxo todo florido na beira da rua cheia de trânsito. vem um sonho, um sonho lindo, em que eu estava na europa com o meu namorado, andando pela cidade linda e antiga e desfrutando cada incompreensão, cada estranhamento. e daí me lembro das macieiras de folhas amarelas de praga, e o que era um sonho vai ficando perto, e eu escuto o estrondo dos bondes as 4 da manhã de baixo da janela do meu quarto. daí eu vejo um ciclista contornando os carros raivosos, vem no sonho um certo jardim bem verde que não começa e nem acaba, árvores grandes e poucas bicicletas. e daí nada mais vem à cabeça que não seja estar livre destas ruas tão conhecidas que vão da minha casa ao meu trabalho, do meu trabalho à faculdade, da faculdade de volta à casa e assim... .daí o meu desejo de estar aberta a uma cidade que me trague, que me sugue, que alcance meu interiror mais ávido por fluidez. fluidez dos movimentos, dos transeuntes, das palavras irreconhecíveis que ameaçam a segurança de se saber uma língua natal. como num sonho com um ipê roxo num inverno berlinense povoado de árvores desnudas, o ipê roxo nesse setembro paulistano remete ao sonho com a vida em outros ares.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

fantasiando a minha casa (??)

Ja há uns 20 dias viajando, e a imagem do aeroporto de Guarulhos começa a se misturar com o Madrid Barajas e o Charles de Gaulle. O sol madrileno em seus últimos dias de setembro me relembra dos primeiros dias de verão paulistanos que chegarão em breve.

Lar real e lares criados: viajar de país em país é deixar rastros de si por ruas estrangeiras e levar consigo pedaços de esquinas que viram, por alguns dias, sua casa.
Em cada cidade, um lar.
E ao chegar em São Paulo, a idéia é iniciar, enfim, a busca por um lar. NOSSO.

Nos devaneios, paredes pintadas de verde claro, postais e posteres enquadrados, fotos de NÓSDOIS nessa viagem mesma que acontece agora (e o agora se desfaz ao mesmo tempo em que acontece).

Cama, bagunça, vinhos, um mac book, janela pro Ipiranga? Passos até o metrô... nos meus devaneios tem um metrô do lado de casa, e São Paulo vai ter um grande metrô como o daqui de Madrid...em dez anos quem sabe.

Em dez anos, quem sabe, tudo isso aqui vai virar uma façanha a ser contada, escrita, nostalgicamente lembrada e - tomara - reeditada.

Quando eu era pequena e acordava no meio das férias numa cama que não era a minha - o sentimento de felicidade era tão grande que, no mesmo instante, batia a tristeza de se lembrar que um dia a mais era um dia a menos naquela cama.

Cada viagem é uma reedição dessa cama feita de saudade...

sábado, 10 de setembro de 2011

Budapeste

Chico Buarque disse em seu livro que Budapeste era amarela. E então cheguei aqui esperando algo assim, uma grande gema de ovo, ruas de aparência iluminada, como se eu chegasse em uma cidade que representasse toda uma dinastia de ouro. Grandiosa, espetacular! Budapeste pode ser tudo, mas só é amarela quando está coberta de sol.
Quando se chega depois das 22 hs, não há outra cor senão um assustador e penetrante preto.
Budapeste: cidade negra.
E o negro vem do céu, da noite, dos predios antigos sem restauração, talvez paredes chamuscadas pelas bombas caídas na guerra, pelos tanques nazistas, depois soviéticos, e depois pelas próprias rajadas húngaras clamando liberdade.
A grandiosidade daqui deixa-nos do tamanho de formigas, e também sua história milenar, e também a dificuldade de sua lingua. Ridicularizados pelo húngaro, nós jovens vindos la da America, falando em inglês - há lingua mais demoniaca? - acabamos exilados no analfabetismo. Analfabetos em um pais estão fadados a viver em silêncio e a buscar compreensão em toda e qualquer outra linguagem - musical, gestual, visual!
Budapeste é farta de linguagem visual, e caminhando ao fim de tarde por ruas ecleticamete habitadas por gentes de todos os tipos - hungaros e nao-hungaros - descortina-se das pequenas ruas, quase por acaso, um rio!
Eis a cidade da qual Chico falou: Budapeste `as margens do Danubio, cheia de pontes e torres, no por do sol. Amarela.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

por terras distantes...

Ja ha uma semana inteira viajando... Das largas e informativas ruas de Berlin, com suas ciclovias, arvores perfeitas e loiros altos, seu pragmatismo eficiente de tudo e em tudo ao nosso redor, chegamos a capital checa. Monumentos tao mais suaves e ornamentais que os gigantes berlinenses, os cartoes postais de Praga tem sempre altas torres, contornos goticos e ruas de bonecas. Mas as bonecas de Praga sao feitas aos montes, em escala larga e padronozada, posicionada estrategicamente nas souveniers shops para serem tragadas por turistas avidos por consumo. Um mar de dinheiro para o emergente capitalista cesky.
E nos atropelam, os turistas em bandos, a cada farol, a cada ponte, a cada passo sobre os anitiquissimos paralelepipedos de uma cidade de uns bons vinte seculos de vida...
Agora, no trem rumo a Polonia, mais uma rainha leste-europeia, mais um territorio a ser descoberto dentre essas todas filhas bastardas da falida URSS.
Roteiro bom para um filme de Kielowsky (ou pro filho dele, mais moderno por certo), a Cracovia promete - pelo menos em minha esperan'cosa fantasia de mochileira viajante - lindas ruas vermelhas, cheias de historia, identidade e personalidade! Paradeiro incerto a turistas avidos por consumir, nao souveniers - mas toda uma energia de um povo, de um tempo novo, de um tempo antigo que ainda vive. Avidos por algo mais...
Meus sonhos de Sao Paulo com a desejada aventura europeia vem cada vez mais tornando-se concretos. Da poerira invisivel dos meus sonhos, Berlin, Praga e agora Cracovia vao ganhando asfalto, tijolos, idiomas, sabores, odores, texturas...
A poeira invisivel dos meus sonhos ganhou materia, e agora e' a Europa que ganha minha propria poeira invisivel.
A noite, ao deitar-me em distintas camas de quartos ainda estranhos, meus sonhos invadem a cena daqui.Noutra cena, sou eu rodeada de quem eu conheco e por quem eu anseio, sou eu rodeada por outros asfaltos e outros tijolos - os do Masp, da Dr. Arnaldo, de alguma sala de aula da PUC (temida sala de defesa de mestrado), a mesma e sempre sala de almocar da casa da minha avo'.
Na cena onirica, sou eu infiel ao solo que piso, ao tempo que crio a mim e ao Joao nesse encontro com o resto do mundo - as vezes tao repleto de desencontros entre nos dois.
Na cena onirica, viajo kilometros na velocidade de um raio inconsciente, e revivo o que eu vivo sempre.
Ha escapatoria a tediosa e repetitiva rotina de minha vida?
Ha como forjar uma amnesia do Brasil ao qual pertenco e mergulhar completamente nas profundezas deste lindo Estrangeiro?
O Joao ao meu lado na cama desperta cada dia mais europeu, cada dia mais desprendido de sua materia-mae. Nao e' mais meu vinculo a terra natal, mas sim a aventura presente!
Meu vinculo ao roteiro de viagem que meticulosamente tracamos e que agora, mais do que nunca, prova-se completamente intracavel.
A cada novo dia, emerge o incerto, e o sol tem brilhado a nosso favor. E falo por duas pessoas em uma so'.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Viajo porque preciso, não volto porque Te Amo

Quarto de hotel, longos minutos, tempo abafado.

Dois amantes em silêncio, lado a lado, numa cama já saudosa, cobertos pela certeza do impossível.

Despedir-se é certo e necessário, deixar que a despedida aconteça é prova de amor.
E eles sabem disso.

Ela ensaia pronunciar qualquer vogal, qualquer consoante. Vem apenas um sopro de ar, vazio de palavras, apenas as reticências se fazem escutar...

Ele tortura-se com a pergunta que lhe certificará daquilo que sabe, mas se nega a saber (ela sempre fora mais forte que ele). Tateia o escuro, tentando, ao dizê-la, encontrar uma luz: VOCÊ VOLTA?

Ela sabe que não voltará para ele, e lhe vem um choro que a impede de dizer seu "não", tão sonoro e enfático seria dizer: NÃO.

Mas não diz. Sussurra apenas o óbvio, quase-afogado pelas lágrimas: DÓI DEMAIS TE DIZER ADEUS.

Longo abraço. Sem palavras de amor, sem sussurros, sem soluços. Tão perfeito, que se anseia por sair.

E do silêncio, nasce um ser estranho: nem bonito, nem feio.
Uma espécie inusual, que soma dois movimentos opostos - um de esperança, outro de perda brutal e absoluta.

Estranho fruto esse, que nasce dos amores impossíveis: germina da dor, cresce na distância, toma forma fantasiosa. Sua morte é sempre misteriosa. Talvez seja o único ser de vida eterna, filho de um útero vazio.

E é ela, afinal, quem se despede e caminha à porta, sem olhar para trás.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Estrangeiro

e pelas frestas da janela de casa, que emoldura a cidade natal, sonha-se com uma pequena e redonda janela de onde só se vê o céu, sem resquício algum de vida aterrisada.

e escutando o som longínquo dos carros pelas ruas de todos os dias, sonha-se escutar apenas turbinas - um ruído que se arraste por boas nove horas consecutivas até terminar num país desconhecido.

passos pelo chão em que se jamais pisou: o aeroporto internacional em que se acorda é a porta aberta ao idílico mundo do Estrangeiro.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Lendo em lugares públicos

Chove uma chuva fina, mas tão fina a ponto de cada gota parecer um quarto de floco de neve. E eu dentro da padaria, tentando ler um livro ao som de urros de crianças incomodadas, tirando os olhos do livro a cada dois minutos preocupada em saber o que incomodava tanto as crianças.
E me vem um pensamento: nossa, as pessoas andam tendo filhos em agosto! As grávidas querem parir em um mês frio?
Pois as crianças todas aparentavam ter um ano... um mini-japonês chorando no meio dos pais que se entreolham irritados, um outro loiro de cabelos cacheados em meio a três mulheres tagarelas. Reclama que quer alguma coisa que nenhuma das três, descabeladas, adivinha!
Mas o homem jovem com a filha no colo parece sereno. Ele toma um café com pão de queijo, ela tem entre as mãos uma rosquinha de polvilho que mete na boca sem morder, e tira da boca toda babada, a rosquina e a mão. Sim, se fosse apenas aquele casal de pai e filha na padaria, eu poderia ler!
E eis que todas as crianças barulhentas e seus pais atolados em fadiga e irritação saem da padaria, e apenas sobram algumas mesas, agora mais silenciosas, e o pai e a filha continuam alí, comendo sossegadamente. Milagre?
Eu volto a ler.
Mas um tanto impulsivamente, olhando por cima do livro, vejo que algo daquela perfeita harmonia entre os dois se desfaz de uma vez: ele a tira do colo, postando-a no cadeirão que a garçonete trouxe gentilmente, querendo ler um pouco do jornal. E ela?
Reclama!
Chora, joga-se no chão, atira para bem longe a rosquinha. O pai, ainda calmo, aponta para a rosquinha e a manda buscar, já! Vá buscar já! Aquele gesto impetuoso, apontando para a rosquinha, olhando a menina fixamente, e ela?
Recusa-se.
Eu volto a ler meu livro, sem sucesso, pois dou-me conta de que passei os olhos por várias palavras que simplesmente não li. Desisto, e fecho o livro. Decido assistir a tal cena, quem vencerá? Ela ou ele?
Ele a pega no colo à altura de seu rosto, explica algo, a rosquinha ainda jogada num canto. Ela não olha para ele, debate-se entre suas mãos como um pintinho querendo sair de dentro de uma caixa que o contém.
Ele, já parecendo sem forças, desiste de botá-la na posição cara a cara e abraça-a, então, deitando sua cabecinha sobre os ombros dele. Um minuto de abraço...e ela?
Acalma-se.
Volta a sentar quieta no colo do pai, ele (que já renunciou ao seu jornal) busca a rosquinha e põe em sua mão. Novamente, recusa! Mas ele, dessa vez, compreende perfeitamente: parte um pedaço da rosquinha e dá em sua boca. E ela?
Come.
Na boquinha. No calor do colo do pai. Na alegria de ter vencido o homem tão grande e tão babão.
Eu desvio o olhar, meio cúmplice da pequena, um leve sorriso no meu rosto, e me volto para a televisão que esteve ligada o tempo todo e que - só agora - eu notava. Clima tempo: em Porto Velho estava fazendo 38 graus! E aqui, pela janela, aquela chuva fina de agosto, todo mundo enfiado na padaria com os cachecóis pendurados nas cadeiras.
E quando volto os olhos novamente para a mesa da frente: já se foram.
Só um mesa vazia... e eu?
Volto a ler meu livro, em paz, com uma espécie de tristeza por tê-los perdido para sempre.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Tarde

Ela chega em casa tarde, estaciona com o taxi na esquina e pede a ele que desligue a chave devagar, demora-se alguns minutos no inteiror protegido do automóvel, contando moedas.

Sai cuidadosamente, mal bate a porta e coloca-se a caminhar nas pontas dos pés, os saltos de madeira apenas corroem o chão, como um pequeno roedor quase saciado.

Dissipa-se, como se fosse milhares dela mesma, sente o ar fresco da madrugada, o quintal pertence todo a ela, as luzes apagadas da casa a colocam estreita à sensação majistral de pleniude.

A casa era dela naquele momento!

Abre, desajeitada, a fechadura, efeito de álcool ainda em seu sangue que corria quente, entra sem respirar. Boicota o próprio som de seus passos num quase-engatinhar mudo. Ela era como uma gata da noite: vestia-se de preto, festiva, as pernas magrelas envoltas pela turva meia-calça avançavam pela sala.

O corpo era dela, e mudava.

Respira um tanto ofegante, acaba eletrizando mais ondas sonoras do que gostaria, falta-lhe controle sobre os próprios movimentos. Os membros mesmo, a cada dia mais cumpridos, causavam nela um efeito de desconhecimento do próprio espaço que ocupa. Os anos da adolescência chegavam.

As luzes de cima se acenderam.

Pode então enxergar-se luminosa, a lâmpada da escada a flechava em alvo certeiro, as pernas é que ficavam iluminadas como se fossem desvendadas. Sobressalta-se, enxerga de longe o vulto Dele no topo das escadas.

O pai desce. Dá-lhe uma ralada. Ela não se defende.

Ela de cabeça baixa, culpada, retorcida em sua própria sensação de infidelidade permanece em frente dele, imponente. De pé em ângulo de 90 graus, ele está sério, e o olhar inquisitivo aos poucos vai sendo substituído por um de decepção.

Sim, sua menina estava crescendo. E ele a perderia para o mundo. Seu drama se confirmava naquela noite, a primeira em que teve de esperar acordado a filha voltar da festa.

Tarde demais para ele.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Going nowhere

Era um ônibus amarelo sem itinerário.
Passava por todas as esquinas do mundo.
Parava nos pontos.
Onde buscava e deixava pessoas que pedissem para subir ou descer.
A regra: jamais deixar a mesma pessoa no ponto em que partiu.
E ninguém precisava se compromissar com nenhum lugar.
E ninguém deveria encrencar-se com uma rotina maçante de repetição de rotas.

Maçante repetição de rotas.

Em cada lugar um novo vínculo.
Em cada parada um novo lugar.
E descer significava ficar - por um tempo - até que o ônibus passasse novamente, após ter percorrido o resto do mundo.
E ficar significava correr o risco
De lidar com o jamais experienciado.

Lidar com o jamais experienciado.

Compromissar-se com um lugar aleatório?
Ou percorrer, simplesmente, a estrada do mundo todo?

terça-feira, 26 de julho de 2011

Não comi

Eu que andava fraquejando do estômago - esse órgão que se sensibiliza a cada entra e sai de emoções - não comi.
Não comi o pão com queijo e mortadela servido no lanche.
Jazia mal dormida de uma noite de nós na cabeça, eu que andava com tanta dificuldade de desatar nós - não comi.
Não comi o pedaço de torrada no café da manhã.
Empapuçada de uma espécie de agonia constante, que me subia e descia pelo corpo todo em formato de dor - não comi.
Não comi a macarronada à putanesca do restaurante tão charmoso.
Também não comi o feijão, que sempre acompanha o arroz no almoço dos dias todos. Comi arroz e carne, tudo seco no prato.
Eu que andava engolindo tudo a seco: os pedidos, as promessas, os olhares investigadores de minha pessoa - Não! eu não queria comer nada.
E como quem se veste inteira para um baile de máscaras, meia-calça, colant, tudo colado no corpo: não expus nada! Tapei cada orifício. Cada boca do meu corpo.
A dúvida e a inquietude alimentam a alma de banquetes interiores feitos de vácuo. Comi tanto vácuo que deixei de lado o pão, a batata, o pedaço de banana. Deixei de lado todos os jantares.
Mas fiquei com o vinho.
E se meu corpo servir de carne a ser amordaçada, abocanhada, despedaçada e deglutida como a mais saborosa das carnes - então me deixo levar a qualquer comilança do amor.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

tête a tête

Não pudera deixar de notar suas rugas: aquela mulher tinha no rosto as marcas das milhões de vezes em que franzira a testa, das milhões de vezes em que sorrira, fechara os olhos, espirrara. Cada repetição de cada movimento de sua face jazia estampada em seu rosto. E seu rosto denunciava uma beleza de outrora. E na voz um tom de melancolia até charmoso. E no olhar, a curiosidade pela outra.

Não! Ela não revelaria a nossa protagonista a sua identidade. Deixaria-se desvendar.

- Durante anos amei um só homem.
Estavam deitadas ao sol, em frente ao mar, na manhã seguinte.

- Quantos anos?

- Nem sei, mas muitos... e houveram diversas interrupções. A cada uma, eu desbravava o vazio imenso que havia em mim na sua ausência, desbravava o vazio como quem procura por uma fresta de luz num quarto completamente escuro. E o que encontrava, a cada ausência dele...

- O que?

- Meus fantasmas. Todos!

- E que te diziam?

- Que eu o perdera para outra mulher, mais jovem e mais bonita. Isso desde que eu era jovem: já me sentia velha desde jovem...

- Teus fantasmas tinham sexo?

- Sim, eram mulheres. Claro. As vezes, eu notava um fantasma do sexo masculino, o do tipo abusador, dava-me medo a violência de que ele era capaz.

- Acha que as mulheres podem te assombrar mais do que um homem violento?

- Felizmente ele (o homem amado) sempre voltava aos meus braços, depois de suas aventuras com elas. E quando eu o tinha, sentia-me protegida dos fantasmas masculinos. Mas as mulheres eram sempre o potencial presente, constante, de repelí-lo de mim. Durante todo o tempo, foram elas as minhas maiores ameaças.

- Não me sinto ameaçada por mulheres, ao contrário. Sinto-me muito instigada por elas, como se com elas eu pudesse aprender tudo sobre o amor. Se meu homem tivesse outra, adoraria saber seus segredos de seduzí-lo...

- Quais são os seus?

- Gosto de ser, simplesmente, o que ele quer. Nem me acho submissa, muito menos desprovida de personalidade: ao contrário. Cada homem que me ama leva-me, sempre,a ser uma mulher que jamais conheci...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

carros, olhos, sapatos

caminhando pela rua, apressado, deparo-me com o farol vermelho para pedestres. paro. os carros descem a ladeira como numa correnteza forte que nunca estanca - um atrás do outro, sem parar.
se olho pros carros me sinto anisoso e com um pouco de raiva.resolvo então olhar pra outro lado: o esquerdo.
encontro uma moça linda, séria, usando óculos escuros. os cabelos bilham de sol e poeira da cidade, cabelos loiros no meio do cinza paulistano são estonteantes e reluzentes!
e eu daria tudo pra ver aqueles olhos cobertos pelas lentes escuras, deviam ser olhos instigantes. senti um calor que vibrava pelo meu corpo, aquela mulher linda e gostosa começou a me excitar - e ela nem olhava pra mim, velho que sou...
fiquei me sentindo um tarado e resolvi olhar pra outro lado, menos tentador: mas não tinha ninguém e eu novamente podia ver aquele fluxo interminável de carros buzinantes - de novo fiquei irritado.
olho pra baixo e respiro um pouco: meus sapatos marrons. e meu pau duro. uma estaca no meio das minha pernas, desejando aquela loira linda.
o farol ficou verde e a moça continuou parada, por menos de um minuto, e quase foi levada pela multidão frenética agora atravessando a rua. eu também fiquei, e na contra-mão do fluxo me senti um ser de outro mundo.
então, num gesto assutado, como quem novamente desperta ao ritmo imossível, pôs-se a caminhar. eu contiunuei parado perguntando a mim mesmo o que será que a entretia tanto, o que será que passava por ela e que a havia tirado daquelo ritmo. o que será que a faz voar?
estar parado com ela foi o meio-minuto mais comprido que vivi.
nunca mais esqueci essa mulher, e fico louco de tesão só de pensar no olhar oculto - voando por algum lugar que jamais vai me pertencer...

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Vasculhando um pote de raivas inomináveis, é sim possível encontrar lá no fundo, escondido sob mil tranqueiras sobrepostas para CEGAR:
UM FIO DE SI MESMO.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

algo

No caminho de volta, desce do ônibus antes da parada em que costuma ficar. Decide fazer uma parte do caminho a pé, e isso significa poder se enveredar por dentro do parque. Um fim de tarde sem nuvens, um sol poente que pinta o gramado com tons alaranjados. Ela deita-se no gramado, como em um tapete gigantesco, úmido. Experiencia o contraste que há no anoitecer de junho: a quentura dos raios do sol que restam, e a frescura de um vento que sopra da noite itinerante.
Enxerga um bebê correndo sem firmeza pela vastidão daquele verde, e o pai toma suas mãos, e depois as solta, para que ele se entregue ao mundo. Não o segura, nem o deixa perder-se, mas encarna em si uma referência ao pequeno.
Ela um dia quer ser mãe, e sente no próprio ventre esse desejo se acumular.
Pensa no dia que passou, no que ainda resta a fazer, e depara-se com um pensamento que não cessa de se intrometer: os compromissos a atormentam!
São quase seis horas, ela deve sair dalí rumo ao comprometido, ao horário combinado, à comemoração onde a esperam. É a sexta feira despertando a cidade. O parque escurece, ela volta a caminhar, para longe da criança com seu pai, para longe do gramado, para longe de sua predileção: aquela pela espontaneidade.
E na reta entristecida de sua "volta ao normal", topa com um amigo que não vê há anos. Sorri encabulada, sabe que ele já se atreviu a convidá-la a sair, sempre meio interessado em...algum encanto que ele supunha que ela tivesse. A surpresa é tamanha (tamanha!) que ela diz que precisa ir, num passo apressado, defendendo-se de si mesma. Há algo que a impede de entregar-se à espontaneidade. Algo que a impede entregar-se.
Algo que a impede.
Como saber o que se perde e o que se ganha quando não se pode prever o futuro?
Para ela é como se algo estivesse sempre - sempre - fora do lugar.

domingo, 12 de junho de 2011

dia dos namorados

Clarice Lispector disse em seu mais nobre livro (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres) que DAR AO OUTRO A PRÓPRIA SOLIDÃO é o máximo que se pode dar de si.

Um belo presente, sem dúvida: não consumível, não cumulativo, não comprável, não extorquível e nem rentável.

Entre a matéria e o sensível há um mundo inteiro - o mundo dos namorados.

Quanto mais esse mundo existe, menos ele se limita a rótulos e datas comemorativas. Menos ele se exprime em trocas, contratos e previsões.

Ele simplesmente há. Ou não há. (quem vai dizer?)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

a wanda

É possível ser impenetrável a muita coisa
Stress
Poeira
Choro de bebê
Olho gordo
Buzina de caminhão
Telemarketing
Bocejo do fulano ao lado
Demanda de atenção
Àquela pergunta cretina:está tudo beeeem??

É possível ser IMPenEtRÁveL, pelo menos em aparência; mas se porventura há cumplicidade, então há condescendência.
Os poros existem para serem penetrados.

A Wanda parece impenetrável
Deprimida e isolada, caso grave
Mantém-se sozinha
Longe das gentes
Mas aceita companhias
E hesita aos convites
Se espera alguém convidá-la, é para sentir o gosto da dúvida
Dizer "não" (nada como um sonoro NÃO) mesmo querendo, no fundo, dizer sim
Pois o interesse do outro por ela será sempre uma dádiva
E guardar-se, isto sim, é a dádiva maior.

A Wanda é uma senhora
Senhora de uma vida de sessenta anos
Bonita e elegante
Guarda dentro de si uma jornada de clausura
Uma longa busca pela expressão do que tem de feminino
A Wanda é dessas mulheres atuais
Que carregam um passado marcado pelo machismo
É dessas que se perguntam se o outro convida pelo prazer da sua companhia
Ou pelo prazer da posse

Porque a Wanda foi possuída por seu marido
Um ciumento que já morreu
Um ciumento que a impediu de trabalhar
E nela fez três filhos, designando-a: Senhora Mãe (e nada mais)

A Wanda guarda em sua tristeza, não a sua viuvez
Mas a atual ausência dos filhos (adultos)
A solidão
E a dificuldade de ser mulher num corpo de sessenta anos
Por sua vez num mundo de 2011 anos (moderno, é o que dizem)
Tão estranho a ela
Em que as mulheres são ...

O que?

Bem-sucedidas no mercado
Mães de proveta
Silicones ambulantes
A Wanda quer ser além, e não encontra por onde
Mas sempre toma a iniciativa de fumar seu cigarro no canto onde gosta
E é nesta brecha que assume e expressa
A sua liberdade
A de ser penetrada pela volúpia de um bom cigarro
E ao soprar para fora seu EU-Volátil
Encontra o silêncio
aquele que a permite escutar o que fala dentro dela.

domingo, 5 de junho de 2011

sexta-feira, 3 de junho de 2011

maré

emoldurada por um vestido branco, a menina-moça-mulher sentada na beira da praia brinca de molhar a borda do vestido.
brinca de molhar as pontas dos longos cabelos a cada espuma do mar.
brinca de fazer seus castelos de areia que desmoronam pouco a pouco, como em pequenos tsunamis.
a espuma do mar invade o meio das pernas da menina, brinca de fazê-la molhada onde ela é -completamente - mulher.
a maré vai e vem, e brinca com ela de ir e vir, e se afasta invocando-lhe desejo (de entrar até a mais escura profundeza)
e volta, cada vez a cobrir mais e mais o ventre quente de menina-moça.
e o sol ilumina o rosto vivo de quem ainda sorri como se sorri na infância (sem pudor)
e a espuma do mar, ao avançar gelada e suave, toca-lhe onde mais teme - e onde mais quer.
e sua brancura confunde-se com o vestido branco, e esconde-a de si mesma.
e faz brotar o infindável mistério em si- o de ser mulher, infinitamente.

domingo, 29 de maio de 2011

uma viagem

Vai, meu menino
Vai viver o que deve ser
Vai viajar pelo mundo, só e com coragem
Porque da noite pro dia você não vai crescer

Vai um tempo pra longe dos meus braços
Vai, seguindo teu desejo de te encontrar
Pra ser homem é preciso desatar alguns laços
Aqueles com o mundo que te cuida e resolve em teu lugar

Vai ser você fora daqui
Em algum lugar ao norte
Aonde você pode sofrer e descobrir
Todo o teu lado forte

Vai um tempo pra longe das minhas garras
E das minhas marras
Porque eu te quero Homem -
- sem medo de me perder

E se houver espera
Que não seja por tempo eterno
E nem uma passagem pelo inferno
Mas que seja o alimento do amanhã

Porque saudade vai haver
Há de haver saudade quando o amor está distante
E que tua ida seja
A consequência deste instante

E que tua ida seja
Seu motivo de manter o pescoço ereto
O tronco reto
E o olhar apontando alhures

E eu jamais vou voltar a te escutar
a querer- com culpa- justificar
Que você deseja além de mim
Pois eu sei que além de mim há muita coisa, enfim.

E o abandono, meu amor, não existe.

domingo, 22 de maio de 2011

palavras não pronunciadas de um cão

sentado em frente ao fogo ardente, rodeado pela suavidade de um domingo romântico, pelo ar da montanha, cheiro fresco de madeira das lenhas que queimam, estômago preenchido de comida e outros quitutes.

encontro a maciez de um tapete mais felpudo do que aquilo que lembro de minha mãe. (que lindo encontro!)

a noite cai fria, eles se amam e me abrem espaço entre eles.

vivo, sem consciência da perfeição do mundo, a fina e delicada combinação entre minha existência canina e a outra existencia - a dos humanos. (ou, em minha concepção, animais bípedes cuja preguiça e gulodísse me soam quase-idênticas às minhas)

se o mundo acabasse, feliz estaria eu por aqui.
morramos entre bichos, natureza e prazer!
(só espero não haver estrondos - tenho medo de trovão...)

terça-feira, 17 de maio de 2011

o mergulho

caminhe até o topo mais alto da montanha mais bonita, suba e sinta o frio na barriga e a possibilidade do descontrole a cada gota de suor na testa.
quando chegar ao topo, vá às bordas do mundo, olhe para baixo até quado conseguir, até o limite de sua vertigem, respire fundo, feche os olhos e ... salte!
aproveite o êxtase, o êxtase de sair do chão, de estar entre as nuvens, todas as imagens de todos os êxtases da sua vinda se completando e se confundindo no escuro de suas pálpebras cerradas . seladas.
Viva o topo do mundo! estar acima e completo, desencarnado como anjo, num ato suicída que se mescla à ruína do inferno.
todos os momentos que você ama, todas as transas apaixonadas e todas as lamúrias.
dance no ar, abra os olhos! árvores e pássaros. azul, branco, azul, verde. as cores vistas em alta velocidade passam velozes.
qual o peso da gravidade? qual o tempo da queda livre?
seus cabelos balançam em fios despenteados, revoltos, seu rosto gela com a temperatura de um ar rarefeito, as pernas e pés bambas, mais leves que sua cabeça que, lentamente, pende ao chão.
as roupas voam, ficará nu!
um lago cristalino aguarda sua queda, límpido, frio e sereno: para sugar seu movimento abrupto.
sua queda provocará ondas, distúrbios. a água reagirá com violência.
seu mergulho será lindo, orgástico e estancará o tempo.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

estória de jornal

dentro dos limites do possível, habitamos o inusual, o improvável, o insólito.
sem prever, a gente sai inteiro do quase-nunca!
dentro dos limites que mal conhecemos de nós mesmos, dá pra tolerar uma violência estonteante que só passa em jornal!
um pai machucado que só se vê nos piores pesadelos ou filmes de terror.
um abuso de poder tão escancarado, capaz de provocar risos involuntários.

dentro dos cenários do mundo
(um mundo com mais atropelos do que caminhadas)
é sim possível ser totalmente vítima-relâmpago!
e nos outros tantos minutos que virão depois do flash - o trovejo longo, raivoso - o que foi real fica guardado na fantasia
e lembrado, em pedaços, vira quase-faz-de-conta.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

o eterno depois

sentada em sua cadeira, fumando seu baseado, ela esperava. muito.

- o que você está esperando? - perguntou o namorado
- estou esperando o que vai acontecer.
- mas assim? espera qualquer coisa que aconteça?
- não...
- e então??
- bom... sei lá... te incomoda muito a minha espera?

(sim, ele ficava muito incomodado em vê-la sentada a sua frente, tão distante).

- é que a distância me dá paz! - ela disse, tentando justificar-se, com pouco sucesso.
- sabe o que me incomoda na sua distância?
- hum?
- é como se você não estivesse comigo de verdade...
- (silêncio)

ela então olha-o nos olhos, olha tanto que é ele quem desvia o olhar.

- estou sim com você. se estivesse mais do que isso, não conseguiria - ela diz em um tom quase trágico (sim, pra ela a vida não pode ser outra coisa que não uma grande tragédia - as vezes cômica)
- bom, é só que as vezes eu sinto - (ele não sabe dizer bem o que sente porque nessa hora sente muito medo de dizer) - eu sinto que...
- (agora ela não o olha mais )
- eu sinto que você espera por mim quando eu já estou aqui!
- a espera pode ser doce, pode ser a unica coisa capaz de me fazer, de verdade, viva!
( o que doía nela era o fato de que quando as coisas aconteciam, a espera acabava, e era sempre uma grande desilusão)
- você só pode ser maluca!!
- sou.
- maluca mesmo! (ele falava com raiva - e a raiva era a de estar submisso a ser sempre quase-ele - nunca ele era inteiro pra ela)
- você não pode me ter inteira pra você - disse em um tom muito sério e decidido.
- ... (ele entende, de verdade e com raiva, porque é tão apaixonado por ela)

aí ele também fuma, e vê entre os tufos de fumaça a lua nascer atrás de um prédio. duro prédio, bela lua.

domingo, 8 de maio de 2011

a maçã

casca vermelha, dentro suculenta
casca apodrecida, dentro como nova
casca de moça suave, dentro de diaba estridente
casca de lima da pérsia, dentro suco de limão
casca de arrogante e frígida, por dentro em chamas

casca crocante, dentro macio
casca de homem sério, dentro menino apaixonado
casca escura, dentro amarelo
casca forçuda, dentro magrelo
casca de máscara, dentro nem pula carnaval

a maçã evenenada
tinha casca doce, e dentro era mortal

o beijo do príncipe
casca invasor, dentro emocionado (quer acordá-la ou continuar a fantasiá-la?)
como o homem que beija vorazmente, e por dentro teme a mulher que beija
que preocupa-se delicadamente, e por dentro a quer em meio a dor (quer ferí-la, maltratá-la a pontapés se pudesse)

a casca branca da moça da pele como a neve
tem por dentro coração de mulher
útero oco
(e quanto mais oco mais pulsante)


a casca enganadora
esconde todo o interior desamparado
toda a polpa que jaz tão fraca
em frangálhos!
(pedindo para ser encontrada)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bin Laden

"o armagedon está chegando, é necessário voar para longe, para o outro-cosmos, que todos vocês sejam resgatados pelos UFOS para o outro-cosmos enquanto eu me solitarizo; é necessário que eu esteja em solidão para me comunicar com o criador supremo, e avisar o FBI: a al quaeda está planejando um ataque armagedônico e holocáustico. O mundo vai podre! Preciso estar só e trancafiar tudo, eu disse tudo! vocês preferem que o armagedon venha holocaustico ou simplesmente hard? Como fazer agora pra amenizar a força com que vem os ataques dos grandes corruptos? Vocês precisam me deixar só, quando me solitarizo é que posso me comunicar com ELE, por favor, deixem-me em casa! eu não vou subir pelas paredes, nem procurar rabo de saia como a mulher fica pensando que eu vou. A mulher e o filho devem ir com o resto ao outro-cosmos, hoje mesmo, pois o dia está próximo, o dia armagedônico"

relato de um telepata em conexão direta com o mundo após ler no jornal que haviam assassinado Osama Bin Laden

ps: dizem alguns sabidos especialistas da psicologia e da psiquiatria que é um caso de esquizofrenia - será que necessita de tratamento este visionário da trama ataque-retaliação que permeia o seu (nosso) mundo? - estaria mesmo louco?

domingo, 1 de maio de 2011

editando sons

o barulho seco do salto no assoalho de madeira, uma graçonete que caminha decidida.

a suavidade das páginas de um livro sendo, vagarosamente, viradas - quebram o silêncio da solidão que envolve a leitura
(sim, é tão suave a solidão quando a escolhemos).

barulho dos brincos de cristal posando na mesa de cabeceira, dos cabelos sedosos dentre os dentes de um pente, dos lençois da cama sendo tateados por um corpo que pede sono.
(chegar em casa é a cura de todo o excesso de peso que um mundo causa)

o estralar dos ossos na primeira espreguiçada matinal, tocar os pés no tapete, a maçaneta que soa hesitante...
(sair do quarto é tão custoso na segunda-feira).

bolhas ferventes na chaleira, tilintar de talheres, dedos tocando a mesa em espera ansiosa
(prenúncio de um dia sem tempo - e sem silêncio).

a água do chuveiro caindo sobre o corpo, o esburrifo do perfume
(prenúncio de alívio, romance ao fim do dia).

respirar.

os gemidos do amor que se confundem com choro - fazer amor é chorar porque é também o transbordamento do invisível que nos preenche.
(o corpo transbordando toca sua orquestra de dores e prazeres).

quando se repara bem, dá pra notar que a vida tem os sons do cinema!
e pode-se viver todos os dias tocando levemente o que não é real, como numa dupla vida...

(homenagem a Krysztof Kieslowski)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Escreve-se (eu?)

senta-se, cruza as pernas, mantém o tom sério (objetivo), o olhar que tenta a neutralidade (essa abstração, esse impossível). aquele que está a sua frente (tão humano quanto ele) desentende. o que ele deve ser alí?
nunca escreve Eu, usa sempre a terceira pessoa do genérico ou a primeira do plural. refere-se aos outros (seus colegas, amigos, sei lá) chamando-os "prezados".

caminhar da intimidade ao mundo - porque os passos necessários são os da "formalidade"?

máscaras de excessos, de excessos...

domingo, 24 de abril de 2011

o rei do mundo

braços tão curtos em um mundo que se alastra pra longe de mim; meus limites são tortos e incertos.
posso agora ver tudo mais do alto, posso percorrer distâncias usando só as minhas pernas. tenho controle sobre mim?
e se no meu caminho surge uma lata amarela, metalica, roliça, fria: quero!
não é só com uma mão, nem mesmo com as duas, é o meu corpo todo que precisa agarrá-la e por isso eu me inclino, bufando, experimentando um jeito todo novo de me esticar. toco na lata e a derrubo! ela rola pa mais longe de mim. sou eu que faço o contrário do que eu quero? como?
projeto-me pra frente, num impulso difícil e certeiro: sim! consigo agarrá-la!
braços tão curtos em um mundo que se faz, de repente, inteiro ao meu alcance.
lata que pode conter em si todo o meu mundo! é grandioso ter o mundo sob meu poder (ainda que por alguns segundos que não somam um minuto).
e vai ficar pra trás, jogada num canto, e vai deixar de ser uma conquista a medida que eu encontrar as próximas...
longos mintuos de aventuras que sobrevoam a passagem do tempo! sou cada dia maior!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

lembranças

Lembro-me dele fazendo a barba, aquele zunido do pequeno motor do aparelho de barbear alastrando-se pela manhã.
Lembro-me de escutar ansiosa o motor do carro dele chegando pela rua, eu já arrumada com uma roupa bem bonita, sentido-me sempre meio feia.
Lembro-me da espera: a primeira dor que senti na vida.
Esperar sem saber até quando e sem saber os motivos da demora. Porque o tempo na infância parece sem fim e da mesma maneira passa tão rápido? E quando ele chegava, ah! Era o momento em que eu sentia que sim, tinha dele muito amor, e era apenas isso o que eu queria.
Lembro-me do silêncio, sentar a sua frente e não ter o que dizer, mesmo querendo dizer um monte de coisas. Meu coração se apertava feliz com a curiosidade dele sobre a minha vida, que aumentava quanto mais eu me mantinha muda diante dele.
(Minha primeira experiência de poder ser mistério pra um homem).
Lembro do soar das bolas de tênis pingando na quadra, eu sozinha esperando no banco. Novamente, a espera. E na espera eu aproveitava pra dizer a todos que passavam que eu estava lá simplesmente porque esperava-o. Havia um ar de comoção nas pessoas que notavam a fascinação que eu tinha por ele, e nisso eu reconhecia em mim uma mulher que surgia a cada dia.
(sim, eu era capaz de capturar as pessoas)
Lembro-me de como EU soava na voz dele, era o único que inventava nomes pra mim a cada vez que me via. Sua voz tão espontânea como o bater do meu coração em sua presença...
Lembro-me de minha desilusão no dia em que escutei, por acaso, ele me chamando de boba a alguém. Eu na minha insegurança adolescente, tentando reencontrar-me em um mundo tão novo (em que eu parecia ainda não caber) e ele lamentando-se de mim por trás de minhas costas.
A segunda grande dor da minha existência.
Lembro-me dele com o choro entalado, querendo me poupar da dor de perder algo, tão desastrado, tão despreparado pra lidar com o sofrimento de uma mulher. E nesse momento eu pude ver nele um menino tão frágil. Justo no herói da minha vida toda, justo no homem que me deu o primeiro colo seguro e a primeira grande saudade.
(a grande queda)
E a experiência da solidão e da busca pelo amor toma enfim seu trajeto mais certo, graças a cada momento longe e a cada momento perto de meu pai.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

ela chega em casa quando tem gente saindo. a meia-noite é a hora que abarca tão diferentes tonalidades.
sua casa no silêncio do início da madrugada parece outra - pouca luz, alguns roncos de motor de automóvel que passa um a um, e cada cair de cada minuto os faz mais raros. seu quarto é uma bolha de sabão de onde se pode ver luzes de semáforos, ruas movimentadas (ainda) e até a placa do pão de açúcar...
seu quarto é uma bolha de sabão.
até quando se pode viver em uma bolha?
fora da bolha, qualquer pequena agressão tinha a fúria de um brutalidade imensa, que rasgava ao meio sua alma tranquila e pouco defendida.
(pouco defendida dentro de uma bolha de sabão)
a brutalidade pode ser doce. faz a raiva implodir em lágrimas, e cada sopro de amor ao redor dela se faz explícito.
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cada sopro de amor forma mais bolhas.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

gripe e insônia

Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar
Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque,
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?
Vou te encontrar Vestida de cetim
Pois em qualquer lugar
Esperas só por mim
E no teu beijo
Provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo
Mas tenho que encontrar
Vem Mas demore a chegar
Eu te detesto e amo
Morte, morte, morte que talvez
Seja o segredo desta vida
Qual será a forma da minha morte
Uma das tantas coisas que eu nao escolhi na vida
Existem tantas... um acidente de carro
O coração que se recusa a bater no próximo minuto
A anestesia mal-aplicada
A vida mal-vivida
A ferida mal curada
A dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido
Ou até, quem sabe,
O escorregão idiota num dia de sol
A cabeça no meio-fio Ó morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres
Me buscar
Que meu corpo seja cremado
E que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos
Na palavra rude que eu disse para alguém
Que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber / Aquela noite...

Raul Seixas

domingo, 10 de abril de 2011

blusa de rosas

no bar, sentou-se ao meu lado. um tanto alterada pela bebida, gesticulava vagarosamente, as sauves mãos femininas, a tenacidade com que falava de qualquer assunto. linda, envolta por tonalidades rosas e vermelhas do que vestia. a sensação de vê-la depois de um tempo fazia com que eu voltasse aos tempos em que éramos juntas, só nós, mulheres em dobro, entregues aos afetos do mundo todo.
estamos ambas acompanhadas pelos nossos respectivos. somos casais não casados, e casávamos alí algo em quatro. e até seis.
novamente entregues aos incertos titubeios afetivos, novamente duas sob os olhos de um Homem (todos os namorados desembocam nele)... apesar de cada qual ser manifestamente de um e de outro, na comunicação muda éramos de todos, inclusive uma da outra (como sempre fora). novamente apresentávamos ao Homem aquilo que ainda não havíamos mostrado, mistério presentificado sob a figura de outra mulher, ou sob a intensidade do desejo do outro homem - por qual? por quem?
nessa multiplicidade, de repente ele se parecia tanto com ela - e eu com o outro ele. o casamento não se trata de propriedade, trata-se da abertura ao múltiplo. e que assim seja...

segunda-feira, 4 de abril de 2011

lugares na cidade

ele disse que tem raiva de que o vejam assim, luta dia a dia contra o rapaz que ele é agora. em um esforço formidável, regride mentalmente a quem era antes. e quando vai aos lugares que costumava frequentar, revive algo que, se lhe pertence, já está transformado pelo tempo - e pelo seu prórpio trabalho em abrir-se à transformação. quem ele é agora?
que tipo de esforço ele precisa fazer para se redescobrir e ter, novamente, alguma identidade?
ele tem raiva de que o vejam assim - não, não é doente, não é essa a sua identidade - mas sua busca por um lugar social, mesmo que com garra, parece muitas vezes ser em vão. os lugares na cidade dizem tanto de quem somos...
neste conflito entre os tempos, ele vai e volta, com raiva e tensão, aos lugares de sempre. e o sempre nunca é o mesmo... como fazer destes mesmos lugares outra vez seus?

domingo, 3 de abril de 2011

caminho ao amor

por certo tempo estive vagando pelos dias, sedenta por suspiros e sentidos, iludindo-me com o bem estar das experiências agudas. apaixonada pela urgência da última vez, mergulhada em cada segundo fugidio de paraísos secretamente encontrados (e rapidamente perdidos).
guardei como pedra preciosa minha própria solidão, cuidadosamente lapidada a cada queda e cada dor. pedra-garantia dos encontros com meus paraísos perdidos, mantidos para recobrir cada abismo negro que vivia.
por tanto tempo estive vertginosa, amarrada às minhas garantias como alguém se amarra a um companheiro pro amor.
pois já era a hora de reconciliar-me, pouco a pouco, com a experiência do dois... mais sedenta por sossegos, livre do soterramento por instantes que sempre me prenunciaram o nunca. (o sempre e o nunca são prisões poderosas)

respiro, enfim, cada instante presente, tão doce é a intimidade do agora.
acordo, enfim, ao teu lado, para uma manhã de puro nada - e dou a ti a minha solidão.

terça-feira, 29 de março de 2011

frágil flor

ao ver a flor amarela desprender-se do ramo, parou, atônita.
(ao testemunhar instante tão raro, ela Imperava)

olhou sem cessar a flor caída no chão, sentindo uma espécie de torpor
como se ela mostrasse alí sua imponência diante do tempo.

eis que alguém comenta em tom banal:
"essas flores nascem e morrem no mesmo dia"

e apequenada diante daquela obviedade (seu Império ruíra),
entristece, e os olhos são agora apáticos.

mostravam-se alí as garras do tempo
flores de vida tão curta que nascem de uma árvore idosa.
como um adulto que demostra uma força quebradiça

(ela notara, dias antes, que na mulher-amada-adulta havia a fragilidade da flor que nasce)

por trás do tempo impiedoso que apodrecia flores no chão
havia a permanência do banal e do óbvio.

e a ilusão de que haveria um dia de testemunhar um instante único
morreu, naquele dia.

terça-feira, 22 de março de 2011

os limites

quando a menina olhou a lua tão grande no céu, pensou: queria ser criança pra sempre!

pensou...pensou....desejou...cobiçou a sorte de todas as crianças, seus direitos ao cuidado, a possibilidade do amor incondicional que toda a criança experimenta.

e agora, com mais de cinquenta anos, sem saber, ela é uma simples criança.

birrenta.

segunda-feira, 14 de março de 2011

o mundo dela são páginas escritas sobre a mesma coisa, em tantas histórias diferentes

domingo, 13 de março de 2011

mais

pegue a sua alegria
sua inclinação a sorrir
a clamar por amor
a falar alto
e gargalhar pro mundo notar sua eletricidade

pegue toda a sua autenticidade
toda a sua vontade de ser
seu sossego familiar
sua insegurança delicada
a magia de sua inocência

seus amigos
seu apetite por tomates
sua entrega aos beijos molhados
aos abraços calorosos
e aos olhares penetrantes

pegue toda a dor
toda a dúvida
seus vários tropeços
e toda a vontade de acertar em cheio
(mesmo com o coração apertado de desrazão)

pegue tudo isso, e soma com o que é meu.

quarta-feira, 9 de março de 2011

conosco

sabes,
naqueles dias sentados sobre a areia
estávamos lado a lado, tu e eu
olhando a linha do horizonte

imagines um mundo sem horizontes:
é caos!
é poeira cósmica misturada ao mar
gravidade misturada ao vácuo

é apenas essa linha
imaginária, bom que se diga
que faz do mundo
uma esfera viva e habitável

sabes,
dentre todas as pessoas do mundo
tu és o único a delimitar
os horizontes do meu mundo.

terça-feira, 1 de março de 2011

o desfile

O mestre-sala se entristeceu quando se deu conta de que, dias antes do desfile, sua porta-bandeira desatou a chorar. Chorava e chorava sem parar e sem saber porquê. As lágrimas escorriam sem secura, dias e dias, ininterruptamente. O mestre-sala começou achando que a culpa era dele. Tentava fazer perguntas, dar conselhos, mas tudo era em vão. Ela não encontrava palavra alguma pra contornar seu choro e aliviar o mestre-sala de sua agonia.

O mestre-sala então começou a se perguntar sobre todos os mistérios femininos: tpm? menopausa? (não, ela era muito nova). ansiedade com o desfile? ciúmes? fora traída? chutada? o noivo não marca casamento? engravidou e teve que abortar? quer ter filho e é infértil? fez promessa pro são minguinho e descumpriu? engordou? achou celulite? cresceu barba? a mãe a acusou? o pai a deserdou?

A porta-bandeira estava muito bonita chorando, ele achava, apesar da afliçao em que se encontrava àquela altura. Ele achou seus olhos mais verdes. Sua face mais rosada. Os lábios tremiam tão docemente, tremiam de agonia desconhecida, e o mestre-sala ia se apaixonando por aquela tristeza sem explicação.

No dia do desfile, ela continuava aos prantos. O mestre-sala então deixou de se indagar e abraçou a mulher, bastante, bem forte, quase tirando-lhe as entranhas por sufocamento. A porta-bandeira soluçava em seu ombro, molhava toda a roupa brilhosa e vermelha dele. Então ela se afastou espontaneamente, limpou as lágrimas do rosto numa tentativa fugaz de sorrir pra ele. Um sorriso sério e decidido. Vestiu um vestido todo preto. Ele a esperou, sereno.

A porta-bandeira e o mestre-sala fizeram uma dança preta e vermelha, como se emergissem de um inferno caloroso e mórbido, ele caloroso, ela de luto por alguma coisa que ninguém jamais compreendeu.

E debaixo de uma chuva de confetes, dançaram, sem choro, durante todo o carnaval.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

tempestade

ouvi recentemente num filme
que a paixão
é o nutriente da insegurança

já ouvi também por aí
que quem semeia vento
colhe sempre tempestade

fiquei pensando nas origens dos fenômenos intempestivos
e na obviedade de que toda a experiência úmida
faz água

descartei o vento e pensei nos líqudos
que transbordam das paixões do homem
que formam gotas gordas e suculentas pra se beber todos os dias...

pensei então que eu diria num filme
ou mesmo por aí:
a tempestade é nutriente da vida
(e que não se morra por alagamento)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

casa de amiga

copos, pratos, janela pra uma rua de ruídos esporádicos, cinzeiro cheio, pote de bis, música num radinho que sobrou da casa antiga.

bancos psicodélicos nos remontam, cada terço do corpo encaixa em outro terço, somos laranjas com roxo e verde e algo sempre negro, sempre alí, unindo silenciosamente nossas almas livres, docemente acomodadas nesse novo lar.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

casa da mãe

na sombra dos reluzentes raios de ira, revolta e reclamações
no extremo oposto dos holofotes mirados à frieza
no fundo de todas as agressões
e demonstrações de ingratidão
por trás de cada gesto antipático e petulante

há amor.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

jota

A Jurema hoje estava tão jururu
jogada como jóia esquecida num armário
encarando a janela
enjaulada no quarto
comendo jujubas

resolveu sair pra uma jornada
tomou chuva a Jurema
e jurou
que com a juba cabeleira escorrendo molhada
iria pegar uma jangada
e ir pra Jacutinga!!

lá ela é amiga do rei
do jagunço
do joalheiro
lá tem sol de se queimar
pro seu moreno jambo despertar a paixão
de todo o joão de Jacutinga.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

sozinha no quarto

passos da mãe no corredor
ela espia pela fresta da porta fechada
espera angustiada pela escuridão, pela solidão
mas a luz se demora a apagar...

há uma presença nessa casa que a consome
que a invade!
é somentte quando a luz se apaga
que ela pode se encontrar com seus próprios demônios.

tornar-se mulher é uma viva metamorfose
em que se ziguezagueia
por entre santas e putas
terrores e fantasias.

só há metamorfose
quando se recusa a engolir uma mãe a seco
e cria-se coragem a deixar-se possuir
por imagens de mil outras mulheres.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Deus

Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.

C.L, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

domingo, 6 de fevereiro de 2011

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Aonde andará Dulce Veiga?

Pobre mulher esquecida, Dulce Veiga
Sempre em atividade
Sempre habitada
Dulce podia movimentar tantos
todos que ela quisesse
a depender do quanto doaria de seu espaço

Dulce foi esquecida por conta de uma confusão
Lapso talvez?
Se tratar-se de lapso, haveriam razoões inconscientes pra esquecê-la.
mas isso pouco importa
porque a histõria de Dulce porta um fim trágico

Dulce Veiga gostava de ter dono
ou dona
era masoquista
uma submissa!
e acontece que o dono nem sempre cuida de seus pertences
vai que ela não gostasse muito de ser cuidada...

sem querer a Dulce deixou de ser reconhecida legalmente
perdeu sua identidade
o dono de Dulce não a registrou
Dulce andava fora da lei sem saber, e sem ser sabida.
pobrezinha, uma cidadã da terra de ninguém

Sem registro Dulce era ninguém
Nao podia circular
portar seus amores
podia ser pega e levada ao pátio
av. do estado, n.900

Agora ela está lá
jogada
em estado lamentável
aguarda o amor de dono
aguarda ser novamente possuída, espera-se que inteira!

sábado, 29 de janeiro de 2011

sábado

Quando muito, vive-se por dias uma total sintonia. E por sintonia digo que a quase totalidade das satisfações de um equivalem ao desejo de satisfazer do outro. Dois que complementam-se perfeitamente foram UM. E UM é momentâneo, eu diria, fugaz. UM ETERNO: impossível. Fato triste pra alguns, aceito com pesar para outros... há uma necessaria metabolizaçao desta tamanha perda, e acho que deve durar uma vida toda pra mairoria...

De toda a forma, quando um deixa de se satisfazer com o que o outro propoe, é geralmente quem propoe que sente a ferida nacisica; a dolorosa fisgada no amor-proprio, como diriam os leigos.

E na tentativa de fazer (re-fazer) UM, aquele que se feriu pode caminhar desde um apelo ansioso ao amor do outro até um desprezo por ele, num ressentido ódio que o pinta todo como completa vítima.

Existiria no mundo a compreesao de que 1 + 1 nao dá UM?

O espaço vazio que se tem em si mesmo precisa ser muito bem cultivado e incoporado como seu, pra que nao se engane achando que alguem pode preenche-lo. pra que se possa ver e aceitar ser separado do outro, tenham ambos a quantidade de amor que for. amor e afastamentos sao reciprocos.

Ademais, dentre tudo o que é pior, ainda prefiro a raiva, o silêncio e a distância ao invés do apelo humilhante em busca do amor do outro. Sentir-se um algoz- ainda que um algoz nao existente - é dos sentimentos mais intensos e horripilamtes que conheci.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Gratidão

Seres mágicos invadiram nossa casa!
Vêm em bando , uns chegam cedo, outros na última hora, uns vem e vão, mas sempre no movimento de ficar!
Vêm com farinha, fermento e ovos, encontram tomates e manjericão. Fazem pizza!
Vêm com álcool e vontade de rir, com lentes de uma máquina fotográfica que nunca descansa.
Agrupam-se de dois em dois, às vezes em três, quatro e mais ainda, e ficam assim, dividindo-se entre um e todos.
Música e fala, chuva e vento, piados e grilos, ruídos que fazem a melodia destes dias mágicos.
São dois os que vão pra cozinha fazer um molho vermelho, um mistura a base e a outra dá a pitada de tempero.
São duas as meninas na água, a pequena boiando apaixonada pela sereia morena de olhos puxados. As duas sonham.
São três as fadas mágicas que registram e retratam cada minuto do dia sem fim.
São dois os guerreiros (?) quase levados pelo vento da tempestade elétrica.
E tem ainda um extraterrestre que aparece e reaparece de chapéu e machado pelo escuro. Lúcifer disfarçado de bêbado...
Do silêncio ao caos, da intimidade à festa total, entre o reconhecimento e o anonimato fazem-se as emoções.
O silêncio da noite é atravessado por balbucios nos quartos, portas que fecham e abrem, e passos dos famintos da madrugada.
De sol a sol a casa permanece habitada.
Seres mágicos comilões, videntes e telepatas, seres amantes e amados, fiéis ao ritmo grupal e ao tempo da natureza, ao tempo dos dias que vão durar eternamente em nós.

amigos são pura magia.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A casa e o mundo

Pássaros.
O amanhecer é úmido e lento, tem melodia crescente.
Amam-se sonolentos.
O roncar do estômago é a única força a fazer levantar.

Crianças.
A manhã é feita de movimentos diversos, sua melodia é frenética.
Sol escaldante, mergulhos no azul.
“Você viu o meu anel de princesa?”

Cartas.
São muitas as possibilidades de se estar a sós, mas o jogo é sempre em dois.
Livros e filmes também os unem em um necessário afastamento.
O amor é uma loucura.

Sal.
Tempera-se o almoço a olho. Qual olho sabe mais?
Borbulha o óleo na panela, a refeição a dois é sagrada.
Algum entorpecente a mais e pode-se fazer música de sobremesa.

Chuva.
No ritmo inconstante de uma tempestade, há um só odor.
Não dizem que a água é inodora?
Pois água na grama tem um cheiro singular.


Grilos.
A sinfonia noturna que prenuncia o descanso daquilo que se movia a luz.
Mas a noite é cheia de vida, uma vida incansável.
A música ligada no rádio sai pelas portas e janelas da casa, que canta.

Tudo.
Deitados sob um céu fresco de estrelas, escutam a natureza.
A casa canta.
E se há fusão à noite tão viva do lado de fora, a casa inveja; e com seu canto nupcial, chama-os para o sonho.

sábado, 15 de janeiro de 2011

tempo de férias

romper com todos os compromissos para compromissar-se simplesmente com o tempo de cada dia e de cada noite.

abaixo os relógios, é hora de seguir o sol, o canto dos pássaros e grilos.
o ronco do estômago.
o sono.
o entra-e-sai do ar nos pulmões
o movimento do suor, da libido e do sonho.

tempo do corpo
tempo do tempo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Esperanto

Esperar

é viver a doce dança

do dia em que se alcança

a perfeita mistura.


Amar

é viver na espera

de poder tirar da dança

toda a amargura.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

ela-toda-vermelha

Olha, eu não gosto muito de falar da minha vida. Sou super reservada, porque já vivi o diabo. Passei uns 20 anos em depressão, teve dias que eu ficava catatônica, sem falar com ninguém, sem comer, sem nem movimentar meu corpo. Sabe, eu perdi minha filha, roubaram a guarda dela de mim alegando que eu não tinha condições de cuidar dela. Eu não podia mesmo, porque eu mal cuidava de mim, e quem cuidava de nós duas eram os meus pais...
Agora eu não tenho mais meus pais... e nem minha filha. Sou sozinha nesse mundo! Você entende? Entende porque a minha depressão piorou ainda mais? E a minha raiva junto! Tenho raiva da mulher que roubou minha filha de mim, do meu ex-marido que me achava... excessiva... Eu??
O pior nem é isso, o pior é que a minha filha se mudou de país pra casar com um cara aí, e desde então ela nem fala mais comigo, a filha da puta. E a puta não sou eu, a puta é a mulher que roubou ela de mim. Puta é a minha mãe que não brigou por ela quando podia, porque eu... eu estava fraca, jogada na cama, jogada na vida. Eu não podia brigar por ela naquele tempo. Puta é a minha filha que arranjou um homem e nem quer saber de mim, que hoje em dia preciso tanto dela... Deve ser ele que nao quer saber de mim... tenho problemas demais pra esse gringo.
Agora eu estou me tratando Mesmo aqui com vocês. Mas vocês precisam cuidar de mim, pelo amor de deus, ninguém aqui me avisa como as coisas são. Fico jogada as vezes, vocês sabem cuidar de mim? Sabem?? Ou não?
Eu arranjei um namorado no primeiro dia que cheguei aqui. E descobri que ele teve outras mulheres, muitas. Ele também tem seus problemas, como eu. Mas ele teve muitas mulheres, como será? Mulher gosta de homem problemático?
Você?? Você gosta? Já teve caso com algum paciente? Eu sei que tem psicólogo que pula a cerca da ética, já teve muito psicólogo que puxou sardinha pra cima de mim. Psicólogo é um tipo complicado na minha opinião, se não fosse psicólogo certamente seria doido... como eu.
Eu acho que você já teve um caso com o meu namorado! Acho não... tenho certeza. Ele já me falou de você. É, já falou... Diz pra mim vai, que eu to cismada com você. Já teve alguma coisa com ele? Aposto que você daria tudo pra cuidar Mesmo de um homem com problemas. Cuidar dele-todinho. Quer roubar ele de mim? Eu sei que as pessoas tem esse ímpeto de querer me roubar o que eu tenho. Por isso eu nunca tenho nada. Roubam tudo de mim.
Eu penso as vezes que o céu é azul porque pintaram ele de azul só pra eu achar que é. Pra eu não ver que é vermelho, vermelho-sangue, vermelho-luxuria, vermelho-puta! O mundo sempre foi assim, vermelho, e todo mundo se mascara. Todo mundo se pinta de azul...
Eu vou ficar de olho em voce viu??? Vou ficar bem esperta te olhando o tempo todo porque voce deve estar sabendo que o meu namorado... ah, nem vou dizer o que ele tem de bom. E voce, voce tem o que??? ahh, agora voce tem a minha vida nas suas maos, porque eu falei! essa eh a minha crise, ta vendo? falar tudo! Porque eu sou reservada. Reservada e deprimida, saca? Droga, voce me deixou em crise, falei mais do que devia, quero matar voce sua puta! Puta!
(sai de perto e volta em cinco minutos)
Desculpa, mesmo, nao queria ter falado isso, mas isso diz do meu problema, problema de enxergar vermelho em tudo, em tudo... as vezes a depressao deixa tudo mais azulado, e ai eu fico em paz.

domingo, 2 de janeiro de 2011

a menopausa de Adélia

Sucumbira ao seu destino de mulher, não sem a dor oriunda da tragédida consequente de qualquer escolha. Casada e geralmente feliz, Lia deliciava-se na segunda gravidez, com o filho de dois anos ao seu lado. Ouvia suas palavras mal pronunciadas, suas tentativas de formar frases, sua voz de bebê que lhe causava freqüentes palpitações. Era apaixonada por aquele menino lindo, loiro, que saiu dela.
Largara o trabalho na clínica, era demais. Vivia das aulas que dava na faculdade, três noites por semana, e pelo dia ocupava-se com o recém-chegado exercício da maternidade. Lia amava o marido, amava a rotinha que dividiam, mesmo que não mais com a paixão fulminante da juventude que já lhe parecia estranha. Era como se aquela Lia de alguns anos atrás não lhe pertencesse mais: sentia como se aquela fosse uma jovem mulher de vida autônoma, separada dela, longe de sua história.
Lia esperava o marido, alisando a barriga. Olhava-se no espelho, o corpo mudado, fitava-se em um processo de auto-reconhecimento. Ouvia a voz do filho, que movimentava a rotina habitual com ondas sonoras melódicas - a melhor melodia que já ouvira. Ela abre o jornal e lê, sem intenção, uma reportagem sobre uma psicanalista renomada. Reconhece na foto a ex-colega de faculdade. A moça dava entrevistas à programas de televisão, jornais e revistas. Quem diria?
Levanta e vai a cozinha, prepara qualquer aperitivo para comer com o marido quando ele chegasse com o vinho. Lia e o marido mantinham o hábito de breves romantismos ao longo da semana, como queijo e vinho, luz de velas, beijos demorados, música.
Sim, era feliz como qualquer mulher gostaria de ser. Mas suas afirmações a respeito da prórpia felicidade vacilavam quando pensava na colega que não lhe saía da cabeça. Sua foto no jornal mostrava que continuava bonita. Era muito sensual esta moça, Lia lembrava-se que durante a faculdade namorava no mínimo uns 5 rapazes e vivia arrasando corações. Tinha casos com homens comprometidos, era odiada pelas meninas certinhas e bem comportadas. Até que se apaixonou perdidamente por um, bem mais velho que ela. O fato de o homem ser casado jamais a impedira de viver com ele o que achava que deveria viver. Era muito obstinada e muito impulsiva, contava suas aventuras a Lia que, na época, escutava inebriada, desejando também encontrar seu grande amor.
Agora dava entrevistas, reconehcida profissionalmente de maneira que ela, Lia, jamais seria. Não por falta de capacidade, mas de desejo. Lia dedicava boa parte do tempo aos filhos e marido, gostava de trabalhar poucas horas por dia. O trabalho lhe consumia energias demais, e ela queria guardá-las ao que, em sua opinião, havia de melhor. Lia perambula pela casa, em movimento errante e descontrolado. Reconhece dentro de si a necessidade de saber o que sucedeu a ex-colega. Anota seu telefone e, num gesto curioso, com lá seu pingo de inveja, telefona a casa dela.
- Alô, quer falar com quem?
- Adélia
Mas Adélia não podia atendê-la. Trabalhava, por certo. Pede a secretária para que retorne, duvidando que Adéilia telefonaria a ela, que há tantos anos não via. Adélia e Lia eram até próximas antigamente, uma em silêncio admirava a outra, cada qual com sua incompletude e desejo de ser oposta a si mesma.
Adélia telefonou tarde da noite, e saíram para uma cerveja uns três dias depois. Durante esses dias, Lia levava consigo uma ansiedade fora do comum. Já sentia saudade da tranquilidade que experimentava antes disso, mas não podia evitar, sabia. Antes do encontro, escolhe a dedo a roupa mais bonita, pinta os olhos.
Adélia, que gesticulava como antes, vestindo seus muitos anéis nos dedos das mãos, falava sem parar. Contava do sucesso profissional, das viagens, do fato de ter permanecido solteria e ainda amante do tal comprometido - que amor (ou desvalor) é aquele? perguntava Lia a si mesma. O coração dava trancos, Lia conhecia a sensação. Estava alí sua tragédia. Podia sentir a potada desta dor familiar,lembrava-se de quando era jovem e desejava o mundo. Sente-se próxima da juventude que antes estranhava.
- Filhos? pergunta Adélia numa exclamação - para quê tê-los se mal tenho tempo pra mim? Não, não me interessa ter filhos, quero viver o amor sem comprometimento, não acredito na felicidade que uma família poderia me dar. Tomarei anticoncepcionais até o dia da menopausa, diz rindo. Mas Lia está séria. Exala um grande suspiro, chama o garçom com a conta. Levanta-se da cadeira, carregando nas mãos a barriga grávida. Diz que precisa ir e, levemente transtornada, sai do bar, anda até a casa numa confusão de choro e riso.
Pensava na menopausa de Adélia.
No caminho, compra bromélias e sente o perfume fresco, como que numa suave renovação... puxa com força os próprios cabelos, a dor faz bem a Lia. Depois recompõe-se e continua, sem Adélia, o destino de mulher que escolhera a si.

retrospectiva

janeiro: Lucy in the sky with diamonds
fevereiro: devaneios.
março: com medo do futuro.
abril: luto.
maio: adaptação.
junho: coração abrindo.
julho: despedida.
agosto: amor fresco.
setembro: meninice.
outubro: paixão.
novembro: o bla di obla da
dezembro: comunhão (com seu grau de dificuldade)